Baseado no livro homônimo de Michael Cunningham, o filme começa com a autora inglesa Virginia Woolf (Nicole Kidman) escrevendo uma carta de despedida a seu marido: “Não acredito que duas pessoas poderiam ter sido mais felizes do que nós fomos, mas sinto que estou atrapalhando a sua vida”. A morte lhe surge como solução e Virginia se deixa levar pela correnteza de um rio.
Em 1923, anos antes de cometer suicídio, Virginia estava escrevendo aquele que se tornaria um de seus mais famosos livros, “A Sra. Dalloway” – e é ele que serve como fio condutor entre a história real de Virginia e as vidas das duas personagens fictícias que compartilham com ela as cenas do filme. Para isso, o roteiro (adaptado por David Hare) conta com uma ótima jogada narrativa: a medida em que compõe as páginas de seu livro, Virginia premedita o que acontecerá na vida de Clarissa (Meryl Streep), uma editora literária que vive na Nova York de 2001 (é graças, também, à ágil montagem, que a ligação entre os cortes transporta o espectador no tempo, sem causar confusão).
As semelhanças entre Clarissa e a protagonista do livro de Virginia vão além do primeiro nome. Assim como a Sra. Dalloway, ela sai para comprar flores na manhã daquele dia em que toda a sua vida passará diante de seus olhos e dentro de sua mente. Clarissa também está preparando uma festa em homenagem a um amigo, o escritor Richard (Ed Harris), que sofre de AIDS. Festas, como diz Richard, parecem ser o meio que Clarissa encontra para abafar a dor. A dor de viver confinado em um apartamento, tomando coquetéis de remédios. A dor de viver uma vida preso, sem luz, sem liberdade de ser você mesmo.
Essa reflexão está ligada diretamente à vida de Laura (Julianne Moore), dona de casa, grávida e casada com um ex-combatente de guerra (John C. Reilly). Laura vive nos anos 50, na plenitude do “american way of life”. “Esta vida é o que eu sempre desejei. Eu tive uma visão da nossa felicidade”, ela ouve o marido lhe dizer enquanto comemoram o aniversário dele. Laura fica com os olhos mareados, mas o motivo de seu pranto não parece ser a felicidade almejada pelo esposo, para quem ela passou a tarde preparando um bolo. O bolo: a única maneira que ela encontra para dizer que o ama.
Até onde se preocupar com o outro e abrir mão das próprias ambições e emoções? Como enfrentar a família, ou mesmo a própria sanidade? As perguntas vão se colocando no decorrer do longa. Tudo pode ser percebido através das protagonistas (injustiça dizer que qualquer uma delas é coadjuvante) em momentos quase imperceptíveis na trivialidade do dia-a-dia, mas que o diretor Stephen Daldry consegue capturar, retirando tensão até mesmo do simples ato de se quebrar um ovo. E o cineasta ainda presenteia a platéia com cenas sublimes, como o repouso de um passarinho em seu leito de morte, ou a inundação no pesadelo de Laura.
Cada época é um estágio. Cada tempo é uma resolução do romance de Virginia. Narrando as histórias das três Sras. Dalloway, o filme discorre sobre a condição em que o ser humano se coloca diante da felicidade. Dali, o espectador tira sua própria mensagem, não importando gênero, número ou grau desse sentimento tão difícil de se definir. “Entendendo a vida pelo que ela é. Vivendo a vida pelo que ela é. Esta é a luz de cada ser humano”, declama Virginia em certo momento. “As Horas” é um filme de questões complexas, mas não de difícil interpretação. É, enfim, visualmente bem trabalhado (há muito mais com o que se surpreender além da maquiagem no nariz de Nicole Kidman) ao mesmo tempo em que busca, na subjetividade de cada espectador, uma reflexão sobre amor, perdão, dor e “as horas antes e depois” de cada momento de comoção.
direção: Stephen Daldry; roteiro: David Hare (baseado no livro de Michael Cunningham); fotografia: Seamus McGarvey; montagem: Peter Boyle; música: Philip Glass; produção: Robert Fox, Scott Rudin; com: Nicole Kidman, Julianne Moore, Meryl Streep, Stephen Dillane, Miranda Richardson, George Loftus, John C. Reilly, Toni Collette, Ed Harris, Allison Janney, Claire Danes, Jeff Daniels; estúdio: Paramount Pictures, Miramax Films, Scott Rudin Productions; distribuição: Imagem Filmes. 114 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.