Natalie Portman e Hugo Weaving em "V de Vingança" (V for Vendetta, 2005) - Foto: Warner Bros./Divulgação
Natalie Portman e Hugo Weaving em "V de Vingança" (V for Vendetta, 2005) - Foto: Warner Bros./Divulgação

“V de Vingança”: A marca da violência

As irmãs Wachowski adoram uma revolução. Ao que tudo indica, elas vão construir a carreira em cima do tema “liberdade para ser quem você quer ser, e não quem querem que você seja.” A adaptação que a dupla fez de “V de Vingança” apresenta diversas similitudes temáticas com a trilogia “Matrix”. Mas no que elas ficaram devendo na reencenação do novo testamento em códigos binários, as duas se redimem nesta versão cinematográfica da aclamada graphic novel de Alan Moore.

Em termos fidelidade, a história do filme ficou bastante parecida com a dos quadrinhos – e nem havia necessidade de ser muito modificada. A trama se passa na Inglaterra, mas não precisava ser transportada para os EUA para que ficasse óbvia a crítica feroz feita ao governo de George W. Bush. Moore escreveu o texto original com o propósito de atacar a política conservadorista de Margaret Thatcher. Quando você o lê hoje, percebe que as críticas que o autor fez na época são perfeitamente cabíveis no que se teme que possa se tornar o “mundo segundo Bush”.

Muito se tem falado sobre a nova politização do cinema americano. Filmes como “Syriana”, “Munique”, “Boa Noite e Boa Sorte” foram feitos no espírito do descontentamento com as forças governantes. Enquanto isso, “A Vila”, “Guerra dos Mundos”, “O Plano Perfeito”, longas mais voltados ao público dos multiplexes, também criticam as elites e as formas como elas têm conduzido o mundo de acordo com seus interesses. “V de Vingança” é um chute no balde do não-dito e do não-mostrado. Temos aqui uma perfeita combinação de entretenimento com uma mensagem realmente relevante. Se, com “Matrix”, as Wachowski preferiram usar uma alegoria para pregarem sua revolução, em “V de Vingança” elas vão direto ao assunto.



Hoje em dia, pensar em um governo totalitarista remete a um passado amargo, coisa de livro de História. Moore e as Wachowski querem mostrar que a instauração de um regime autoritário não só ainda é possível, como já pode estar acontecendo debaixo de nossos narizes. Claro, ele e elas tomaram a liberdade proporcionada pela ficção para justificar o surgimento do despotismo com uma catástrofe nuclear/biológica. O próprio Moore admite que foi ingênuo ao achar que precisaria de tanto para uma ditadura surgir. De fato, não precisa, e basta ver que muito do que acontece nos quadrinhos e na tela já é realidade: a cultura do medo; o uso da imprensa para fabricar notícias favoráveis ao governo; a quebra da privacidade da população; a xenofobia. Tudo fica tão claro, que não tem como você não enxergar em Adam Sutler o próprio Bush (com a diferença de que John Hurt é um ator muito mais convincente do que Dubia). E essa mordacidade também está nos pequenos detalhes: repare em uma TV que exibe uma cena do popular seriado machista “Storm Saxon”, na qual um árabe aparece como vilão, torturando a mocinha do programa.

Alguém pode dizer que o filme faz uma defesa do terrorismo. Acho esta uma conclusão equivocada, visto que quem faz terror ali é o governo. Somos apresentados a uma desmistificação: como V diz, “a violência pode ser usada para fazer o bem”. O importante é não confundir as coisas: quando vemos V explodir prédios que são símbolos, assim como eram as Torres Gêmeas, não é para interpretar que o filme apóia o 11 de Setembro por fazer do terrorista um herói. É justamente o contrário: uma crítica à necessidade de um ato terrorista para que as coisas se ajeitem no país. A própria existência de V e de sua vingança é sintoma de que há algo de podre no reino. “Cada ação provoca uma reação igualmente oposta.” Autoridade versus anarquia. Se o governo fez seu povo temê-lo, é chegada a hora de o povo pagar na mesma moeda.

“V de Vingança” não pretende ser um filme para agradar apenas os fãs de Moore (ele, aliás, de tanto implicar, conseguiu que não colocassem seu nome nos créditos). De toda forma, a título de comparação, o que mudou em relação à graphic novel foram detalhes como: a época, adiantada para 2015 (já que 1998 soaria um tanto estranho); Evey (Natalie Portman) transformada em uma funcionária da rede BTN; e a troca na ordem de algumas passagens, como o discurso de V na televisão, que agora acontece no começo. As mudanças mais drásticas estão no final. Algumas soam desnecessárias, embora não sejam ruins a ponto de fazerem você sair do cinema xingando. Em contrapartida, outras alterações melhoram o desfecho original. Num balanço, o veredicto sobre a adaptação é positivo.

Quanto ao trabalho do diretor estreante James McTeigue, só posso dizer que ele se sai bem, ganhando o direito de criar cenas de puro valor visual, mas pouca importância narrativa (a última luta de V contra os Homens-Dedo, por exemplo). Contudo, ainda tenho minhas dúvidas se ele não é só um pau-mandado. O filme inteiro tem a cara das Wachowski.

Natalie Portman está em mais uma performance inspirada, mostrando que sua meninice definitivamente ficou para trás. Hugo Weaving, mesmo sem mostrar o rosto, se encarrega de criar um V caracterizado pela excentricidade. Era fundamental escalar um ator com uma voz marcante para o personagem e a escolha do “Agente Smith” se comprova mais do que acertada.

Mesmo depois da última cena, “V de Vingança” oferece um remate perfeito, com “Street Fighting Man”, dos Rolling Stones, tocando nos créditos finais. Um toque de elegância e bom gosto, que o eleva ao patamar do primor.

Observação: texto atualizado e revisto para republicação em 5 de novembro de 2018.