“Memórias do Subdesenvolvimento” é um filme marcado por contraposições.
Escrito e dirigido por Tomás Gutiérrez Alea (“Morango e Chocolate”) a partir do livro de Edmundo Desnoes (que também colaborou no roteiro), este clássico latino-americano é situado na Cuba recém-revolucionada de Fidel Castro, onde encontramos o protagonista, Sergio (Sergio Corrieri), responsável por estabelecer o principal conflito da trama.
Sergio é um intelectual burguês que se vê sozinho em Havana após a partida de seus pais e de sua esposa. Enquanto eles preferiram emigrar para os Estados Unidos, Sergio decidiu permanecer em Cuba e tentar se adaptar à nova realidade do país. “É como se eu os tirasse de dentro de mim,” ele desabafa no aeroporto, ao ver a despedida de membros da classe social na qual viveu inserido e da qual agora tenta se desvencilhar.
Mas esta não será uma missão fácil. Sergio é um personagem sem lugar naquela sociedade, e sua busca por um ponto de contato com aquele povo o coloca no centro de um doloroso processo de degradação espiritual.
Alea retrata habilmente o estado interno de Sergio com uma direção brilhante. O modo de filmar é influenciado pela Nouvelle Vague, com uma câmera solta, que se movimenta com total liberdade. Isso possibilita a Alea criar cenas interessantíssimas, como, por exemplo, começar mostrando o personagem no quadro e, sem corte, transformar a seqüência num plano-subjetivo. Ao dispensar a cartilha, Alea gera possibilidades e tem o dom de executá-las com perfeição.
Outra influência clara vem da abordagem neo-realista, porém, Alea toma um certo distanciamento estilístico ao alternar constantemente os tempos narrativos, criando assim mais dois contrapontos: do ponto de vista metalingüístico, já que se propõe a confrontar as formas da linguagem cinematográfica; e do ponto de vista narrativo, criando duelos entre passado e presente, através de flashbacks e vários signos (a gravação da briga de Sergio com a esposa, os objetos pessoais dela etc.), e entre realidade e fantasia, com cenas que se passam na imaginação do protagonista.
Mas o principal dos contrastes, justamente aquele que faz o filme funcionar tão bem, está entre as cenas documentais e ficcionais, suturadas de forma a corroborar a formação de uma atmosfera verossímil. Nela, o espectador é levado a trilhar um caminho calcado por uma bruta realidade, sendo ao mesmo tempo guiado por uma reflexão existencial, não apenas sobre um homem, mas sobre toda uma população.
Memórias do Subdesenvolvimento (Memorias del subdesarrollo, 1968, Cuba). Direção de Tomás Gutiérrez Alea. Com Sergio Corrieri, Daisy Granados, Eslinda Núñez, Omar Valdés e René de la Cruz.
O DVD
“Memórias do Subdesenvolvimento” é o quinto DVD da Coleção VideoFilmes, que vem fazendo um excepcional trabalho em tornar disponível ao público filmes relevantes e que marcaram época, mas que dificilmente são encontrados hoje em dia. Dessa forma, mesmo que a imagem apresentada esteja com pequenas sujeiras derivadas da película, a preservação do filme já representa um ato louvável. Mas a presença de artefatos não prejudica muito a qualidade da transferência, que é muito boa, mantendo a razão de aspecto original, 1.66:1. O áudio está disponível em 2.0 canais, no idioma espanhol. Há legendas em português, inglês e espanhol.
O principal extra do disco é a faixa de áudio com comentários dos cineastas brasileiros Walter Salles, Nelson Pereira dos Santos e Eduardo Coutinho. Com esses nomes juntos, só se pode esperar algo de qualidade e o que eles proporcionam é praticamente uma aula de cinema. Salles oferece várias informações sobre a produção e serve como um mediador para a conversa entre Pereira dos Santos e Coutinho, cada qual com sua própria bagagem cinematográfica. Ambos compartilham conosco suas visões sobre o filme, sempre indicando e desconstruindo as melhores cenas.
Além de biografias e uma galeria de fotos, completa o DVD, como curiosidade, um exemplar do Cine-Revista. Trata-se de um programa de cerca de dez minutos de duração, reunindo esquetes de humor e informações educativas, que era apresentado ao público nos cinemas cubanos antes da atração principal. Alea trabalhou no Cine-Revista de 1956 a 1959, portanto, trata-se de uma pequena relíquia da carreira do diretor.