Em “Eu, um Negro”, o cineasta, antropólogo e etnólogo Jean Rouch, um dos pais do cinema verité, recriou o formato documental em duas instâncias. Primeiro, ele pediu aos rapazes que são objeto de seu filme para interpretarem, em situações verdadeiras, personagens criados por eles mesmos. Depois, os mesmos rapazes dublaram suas falas e adicionaram outras, baseando-se no que viam na tela, sem som. O resultado é um filme de camadas, em que Rouch explora a fronteira entre ficção e realidade, onde uma desconstrói a outra ao se misturarem.
Rouch acompanha um grupo de imigrantes nigerianos que chegou a Treichville, bairro de Abidjan, uma das então novas cidades africanas que recebiam jovens desempregados em busca de integração no cenário moderno que se configurava no continente. Os personagens que eles criaram para o filme são versões de “ídolos” da cultura que os colonizou. Um diz que é um agente federal americano, outro quer ser um boxeador campeão como Sugar Ray. Eles se espelham em modelos de sucesso para criar uma ilusão que diminui a dor da real condição em que vivem, trabalhando duro para ganhar apenas o suficiente para atravessar o canal de barca e terem o que comer. “Não temos dinheiro nem para pagar uma prostituta,” lamenta-se um deles em certo ponto.
“Eu, um Negro” é interessante não só do ponto de vista cinematográfico, já que é um filme que se constrói no improviso, mas também por seu lado naturalmente antropológico, que nos apresenta a uma cultura e a relação que ela mantém com aquela que a domina. Aqui, a falta de sincronia entre áudio e imagem dá lugar a uma conjuntura muito mais comovente: a dos personagens com a narrativa espontânea, e desta com o próprio filme.
Eu, um Negro (Moi un Noir, 1958, França). Direção: Jean Rouch.
O DVD
Oitavo título da Coleção VideoFilmes, “Eu, um Negro” é apresentado em um DVD simples que traz como encarte um texto de André Bazin sobre “Os Mestres Loucos”, curta dirigido por Jean Rouch e que acompanha a atração principal do disco.
“Os Mestres Loucos” é um relato sobre uma seita africana em que os membros se reúnem num fim de semana para um ritual em que invocam espíritos e sacrificam um animal. Mas, em vez de serem possuídos por entidades e deuses da natureza, eles se transformam em figuras do colonianismo inglês (o governador, o cabo, o condutor do trem etc.). As imagens são fortes por sua franqueza e impressionam, principalmente quando o diretor compara aqueles indivíduos dentro e fora do ritual.
O DVD também traz um documentário de 41 minutos sobre Rouch, contendo trechos de seus filmes e depoimentos do próprio cineasta e de estudiosos sobre sua obra.
O vídeo está em tela cheia (mesma razão de aspecto original), com boa qualidade de imagem. Não há o que reclamar sobre o áudio, apresentado em uma faixa estéreo 2.0.
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.