“O País de São Saruê” é um documentário sobre a vida de lavradores, garimpeiros e outros moradores do nordeste brasileiro, filmado em preto-e-branco e realizado no fim da década de 1960. É possível que a primeira reação do espectador frente a essa descrição seja: “Não, muito obrigado, prefiro ver um filme mais interessante”. Infelizmente, esse preconceito do próprio brasileiro contra filmes de seu país existe, ainda mais com filmes antigos. Sendo documentário, então, nem se fala. Mas eu sugiro que você dê uma chance a este trabalho de Vladimir Carvalho (irmão de Walter Carvalho, hoje o principal diretor de fotografia do nosso cinema), pois acabará descobrindo uma obra-prima que quase foi perdida com o tempo. Restaurado entre 2003 e 2004 a partir da única matriz ainda existente (um internegativo de 35mm feito a partir do negativo original de 16mm), o filme está agora disponível em DVD para que novas gerações o conheçam.
Na verdade, “O País de São Saruê” é mais que um documentário. É um verdadeiro ensaio audiovisual sobre a vida sertaneja na região paraibana do Rio do Peixe, situada no “polígono da seca”. Carvalho começa o filme com uma narrativa poética, mostrando a labuta dos moradores e a interação deles com a dura paisagem que os cerca. As imagens são acompanhadas pela narração de um poema de Jomar Moraes Souto, que, para escrevê-lo, se inspirou nas próprias imagens captadas por Carvalho e sua equipe ao longo dos quatro anos de produção.
Num segundo momento, o diretor entra na denúncia contra a exploração dos trabalhadores pelos donos de terra (motivo que levou a censura a proibir o filme em 1971 – só foi lançado oficialmente em 1979, quando acabou premiado pelo júri do Festival de Brasília). A voz daquele povo toma as rédeas e conduz o filme a partir daí, em entrevistas com personagens como o ex-lavrador que conseguiu se tornar um bem-sucedido empresário, o voluntário da paz americano dividido entre duas situações políticas conturbadas (a do nordeste brasileiro e a de seu país, em guerra no Vietnã) e o senhor idoso que lamenta a decadência do garimpo na região.
Mesmo com a imagem ainda riscada e com sujeiras, o filme mantém sua beleza estética graças à bela composição dos quadros, aliada à ágil montagem e à praticamente incessante trilha sonora, que varia de cantigas sertanejas aos hits da Jovem Guarda “Quero que Vá Tudo Para o Inferno”, de Roberto Carlos, e “Era um Garoto”, na voz de Brancato Júnior.
Em “O País de São Saruê” (o título faz uma irônica referência a um cordel que fala de uma “terra prometida”), Carvalho não retrata seus personagens como vítimas, mas como homens e mulheres corajosos que vivem nas mais precárias condições e enfrentam as dificuldades que lhes são impostas. É um filme-denúncia, um tratado, um registro histórico, que valoriza o esforço daqueles que eram (e ainda são) prejudicados pela miséria.
O País de São Saruê (1971, Brasil). Direção: Vladimir Carvalho.
O DVD
Título 10 da Coleção VideoFilmes, “O País de São Saruê” é apresentado em vídeo no formato standard em preto-e-branco. A imagem pode parecer suja, mas há de se considerar que o material original estava praticamente perdido. Apesar dos riscos e sujeiras, o trabalho de recuperação do longa o deixou perfeitamente assistível. O som, em Dolby Digital 2.0., já não sofre tanto e tem ótima qualidade.
Entre os extras, destaque para “A Bolandeira” e “A Pedra da Riqueza”, dois curtas realizados por Vladimir Carvalho a partir do material filmado para “O País de São Saruê”. O primeiro trata dos antigos engenhos de cana, enquanto o segundo fala sobre o garimpo em uma mina no interior da Paraíba.
O disco ainda traz “Vladimir 75”, curta de Walter Carvalho, um depoimento de Carlos Brandão sobre a restauração de “O País de São Saruê” e uma entrevista com Vladimir Carvalho feita por Carlos Alberto de Mattos, na qual o diretor fala sobre a realização de seu filme. Ainda há um texto em português sobre a censura sofrida pelo documentário em 1971, filmografia do diretor e galeria de fotos.
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.