Não é à toa que “São Paulo Sociedade Anônima” é considerado um dos dez melhores filmes da história do cinema brasileiro. Filmado por Luís Sérgio Person no início da década de 1960, o longa até hoje produz ressonâncias temáticas, não só em nossa sociedade, mas em qualquer outra onde o indivíduo de classe média se vê sem direção em meio às preocupações que leva de casa para o trabalho e vice-versa.
Nesta crônica da cidade grande, Walmor Chagas interpreta Carlos, um jovem que larga o emprego em uma grande empresa para trabalhar como gerente de uma fábrica de auto-peças. Entre a troca de trabalho e a tentativa de subir rápido na vida, Carlos se envolve com três mulheres, cada qual com uma personalidade peculiar: Luciana (Eva Wilma) é a certinha, com quem se casa; Ana (Darlene Glória) o atrai pelo olhar ambicioso; e Hilda (Ana Esmeralda) é a paixão do passado, com quem dividia os mesmos ideais.
Chagas compõe um personagem introspectivo, que ao longo do filme demonstra um olhar cansado e indiferente durante suas constantes caminhadas pela cidade. Esse aspecto blasé de Carlos representa um sentimento geral que pode ser observado nas pessoas que vivem nas metrópoles: tudo parece se tornar desinteressante com a rotina diária. Os pedestres, prédios, carros, placas. Nada espanta e tudo é tédio.
Para retratar esse sentimento de angústia de seu protagonista, Person cria uma narrativa reflexiva, subjetiva por excelência: em vários momentos ouvimos os pensamentos de Carlos, praticamente como se o filme se passasse em sua cabeça. O que se vê na tela é também o que ele vê. A não-linearidade dos acontecimentos é uma amostra disso, já que a memória do personagem também é uma das guias da história, indo e voltando no passado a fim de ligar um evento a outro.
Por Carlos ser um homem solitário (nunca o vemos na companhia da família ou amigos, as únicas pessoas com quem ele convive são suas amantes e os amigos e parentes delas), Chagas está praticamente em todas as cenas do filme. Duas em particular chamam a atenção: aquela em que, embriagado após o reveillon, ele grita o nome de Luciana em frente à casa da moça e quebra garrafas na rua; e a seqüência em que ele repete “Aceitar, recomeçar!”, quase como um mantra. Através da montagem, esta segunda faz uma analogia do homem como engrenagem da cidade e estabelece aquele que é o principal conflito do longa: “recomeçar” é viver em ciclo, como uma máquina. Mas o homem não é uma máquina, logo, sua vida pessoal e afetiva dificilmente se adequará a uma rotina mecânica.
Meu professor de sociologia (o saudoso “Kika”) na faculdade me disse certa vez que um dos grandes perigos que o indivíduo da sociedade urbana e consumista corre é confundir “utilidade” com “felicidade”. É um pensamento que não se aplica apenas aos tempos de hoje, quando ele se encontra intensificado. Vem de longa data e “São Paulo S/A” o reflete bastante. O valor do filme é ainda maior quando pensamos que, numa época em que a principal preocupação era o desenvolvimentismo, Person virou sua câmera para o homem e viu que dentro dele havia uma revolução contida, suprimida por um maquinario impessoal que o enxergava como mera peça para seu funcionamento.
São Paulo Sociedade Anônima (1965, Brasil). Direção de Luís Sérgio Person. Com Walmor Chagas, Eva Vilma, Lenoir Bittencourt, Darlene Glória, Otelo Zeloni e Ana Esmeralda.
O DVD
Lançado em DVD pela VideoFilmes, “São Paulo S/A” está com qualidade de imagem impecável. Há cenas em que me assustei com a ausência de sujeiras, principalmente naquelas em que o fundo é branco. Não consta no DVD informações sobre um processo de restauração, mas, sem dúvidas, foi feita uma excelente transferência. O som também está ótimo, apresentado em uma faixa Dolby Digital 2.0.
Os extras deixam um pouco a desejar por não trazerem atrações que se aprofundem na realização do filme. É uma pena que não se tenha aproveitado Walmor Chagas e Eva Vilma para a gravação de uma faixa de áudio comentada. Os dois atores só aparecem em uma breve entrevista de três minutos de duração, feita a partir de depoimentos que a filha do diretor, Marina Person, colheu para o documentário “Person”, de 2003, feito em homenagem ao pai (aliás, a não ser que esteja planejado um lançamento futuro de “Person” em DVD, o filme certamente poderia estar no mesmo disco que “São Paulo S/A”, nem que fosse numa edição dupla).
Há, porém, um material curioso: comerciais de TV dirigidos por Luís Sérgio Person. São pequenas (e divertidas, por vezes) peças publicitárias que somam nove minutos no total. Entre elas, se destaca a de um cartão de crédito recomendado sem constrangimento por várias personalidades da arte, do esporte e da alta sociedade.
O disco ainda traz biografia e filmografia do diretor e um texto que o próprio cineasta escreveu sobre “São Paulo S/A”. Apesar de carecer de extras mais chamativos, o DVD com certeza vale a pena dada a importância do filme.
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.