Batismo de Sangue

Digno de registro histórico na cinematografia brasileira, “Batismo de Sangue” retrata a tortura exercida por Fleury e seus lacaios com um realismo cru e imagens duras, sem em nenhum instante poupar a platéia – a câmera, sempre bem próxima das vítimas, em certos momentos chega a ser os olhos do público. Mais que uma trama sobre os freis dominicanos que ajudaram a Ação Libertadora Nacional contra a ditadura, este é um filme onde a tortura e suas conseqüências deixam de ser pano de fundo e se tornam a própria história.

O principal personagem em que esse tema incorre é Frei Tito, interpretado por Caio Blat. Helvécio Ratton, diretor e co-roteirista junto com Dani Patarra, dedica boa parte do longa ao trauma sofrido por Tito, iniciando e encerrando o filme com a cena de seu suicídio. Em seu melhor papel no cinema até agora, Blat transmite com absoluta competência a angústia de seu personagem, atormentado pela imagem do “Papa” Fleury, mesmo depois de ter sido solto e estar exilado na França. Essa força da imagem de Fleury não seria a mesma sem a imponente e enervada atuação de Cássio Gabus Mendes, que consegue não se render ao fácil tom caricatural que seu personagem poderia ter assumido. Um ótimo ator, versátil, que atualmente pode ser visto em dois papéis totalmente diferentes, aqui e em “Caixa Dois”, brilhando em ambos.



Léo Quintão e Odilon Esteves, como os freis Fernando e Ivo, respectivamente, também oferecem boas atuações, o que já não acontece com Daniel de Oliveira, que interpreta Frei Betto, autor do livro homônimo no qual o filme é baseado. Falta-lhe uma certa naturalidade que não carece a seus colegas – algo, aliás, já constatado em “Zuzu Angel”. Para piorar, ele ainda sofre ao contracenar com Kassia Lumi Abe, intérprete da fotógrafa Taeko, em uma cena que de tão constrangedora poderia ter sido excluída do corte final sem afetar em nada o restante da narrativa.

Apesar de pecar por essas atuações e demorar um pouco mais que o ideal na apresentação dos freis e do cenário, “Batismo de Sangue” se redime a partir do momento em que os freis são presos, tornando-se possivelmente o exemplar mais contundente do catálogo de filmes nacionais sobre a ditadura. Há quem diga que a forma como Ratton retrata a tortura é sensacionalista ou exagerada, mas a verdade é que poucos dos que viram, estão vendo ou verão o filme sabem de fato o que aconteceu naquelas câmaras. Qualquer tortura será horrível em qualquer momento, mas será muito mais dolorosa para quem a sofreu. Se o que é mostrado no filme é forte, não duvido que tenha sido mesmo. Pelo contrário, acredito que foi ainda pior na realidade.

No aspecto plástico, Lauro Escorel trabalha em sintonia com a direção de arte, com uma fotografia que corresponde à crueza da história e do período histórico, cuja reconstrução cuidadosa torna perfeitamente verossímil para o espectador a época em que o filme é situado – característica, aliás, compartilhada com dois recentes “colegas temáticos”, “Zuzu Angel” e “O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias”, o que demonstra uma evidente evolução técnica de nossos profissionais.

A trilha sonora, composta por Marco Antônio Guimarães (que já havia feito um excepcional trabalho em “Lavoura Arcaica”), também merece elogios. Poucas vezes nas produções nacionais ouvimos uma música instrumental tão distinta, com a utilização de diversos instrumentos, pontuando dramaticamente a narrativa.

Vou correr o risco de cair no lugar-comum, mas acredito ser fundamental que o cinema deixe registrado o horror sofrido, e exercido, durante os Anos de Chumbo para que não desvalorizemos a liberdade de que desfrutamos hoje. Não porque os militantes, ou no caso os freis, sejam heróis a quem devamos a salvação, mas porque eles se sacrificaram para mostrar que havia algo muito errado acontecendo no país. E Ratton realiza esse registro em “Batismo de Sangue” quase como quem cumpre um dever cívico.

nota 7/10 — vale o ingresso

Batismo de Sangue (2007, Brasil), dir.: Helvécio Ratton – em cartaz nos cinemas