Peço desculpas por ter iniciado o texto de uma forma um tanto egocêntrica, mas é que o novo filme de Beto Brant, co-dirigido por seu parceiro de longa data, Renato Ciasca, fala direto com um público específico, no qual estou inserido: jovens entre 20 e 30 anos que sofrem de uma falta de perspectiva neste momento de conquistar a independência, mas sem conseguir se desligar do refúgio encontrado sob as asas dos pais; um momento atual, em que as portas do mundo estão abertas para sermos livres, mas, como ser livre, se é o dinheiro que nos garante essa liberdade? E como se paga por ela, se você cresceu e não te ensinaram a lutar para alcançá-la?
É uma geração de classe média, que, embalada por um certo comodismo que os pais proporcionaram (é tão comum ouvir em casa a frase “No meu tempo, viver não era tão fácil”), chega a essa idade sem a garantia de um emprego certo, ou uma forma de conseguir um – situação que faz a pergunta “Será que eu escolhi a profissão certa?” andar em círculos dentro da cabeça. Sem falar na pressão dos próprios pais, que amadureceram em uma época totalmente diferente, quando o emprego fixo era mais uma regra do que uma exceção, e quando eles talvez não tenham tido tempo ou a chance para pensar se o importante é fazer o que se gosta ou o que é necessário.
O longa é baseado no romance “Até o Dia em que o Cão Morreu”, de Daniel Galera, que, como eu, nasceu em 1979. A história é quase autobiográfica, já que, assim como Ciro (Julio Andrade, de “O Homem que Copiava”), o escritor também trabalha como tradutor literário. O livro foi concebido a partir das experiências e pensamentos de Galera na época em que ele estava com 20 e poucos anos. Revisto hoje, como o autor mesmo afirma, o texto parece conter idéias um tanto imaturas. Pode ser, mas tudo aquilo pelo que Ciro passa e pensa encontra alguma ressonância no espectador com quem o protagonista compartilha alguma(s) parte(s) de seu drama.
Uma boa forma encontrada por Brant e Ciasca para mostrar a indefinição em que a vida de Ciro está estacionada é a ausência quase total de bens materiais no apartamento onde ele mora. Circo chegou até ali, mas ali ficou. Não comprou móveis, não comprou roupas, quanto mais carro. O que há de mais valioso ali é Marcela (a estreante Tainá Müller), garota que ele conheceu numa noite, por quem se apaixonou e com quem “meio que” divide o apartamento, junto com um cão sem nome, que ele também encontrou numa noite e que lhe acompanhou até em casa.
O animal está lá, mas podemos dizer que o principal “cão sem dono” da história é o próprio Ciro (interpretado de maneira muito natural por Andrade, que representa muito bem a introspecção de seu personagem, assim como seus momentos de explosão, quando está bêbado ou quando se desespera). Tal como o cachorro – de quem Ciro se recusa a ser chamado de dono, preferindo dizer que é apenas seu amigo –, o rapaz vai em casa, dorme e volta a perambular pelas ruas. Não é dono de nada e ninguém é seu dono, nem mesmo os pais, que o apóiam e o aconselham, mas jamais o impediram de seguir seus sonhos. E se sonhar é viver, como ele mesmo diz, Ciro começa a entrar em um pesadelo ao primeiro sinal de que Marcela, modelo em início de carreira, poderá sair de sua vida. Ela, que é a luz, como o porteiro do prédio diz.
De fato, Marcela é aquela que ilumina o filme, que na maior parte do tempo acontece em um tom pouco otimista. Interpretada com doçura pela lindíssima Tainá Müller, a personagem é a representação daquela que considero a minha “garota dos sonhos”. Sei que de muita gente também, e Brant e Ciasca conhecem muito bem sua platéia: os diretores exploram todos os encantos da atriz, que possui aquele irresistível jeito meio meigo, meio rebelde, traduzido numa combinação ideal de inteligência, personalidade forte, sensibilidade e beleza.
Marcela não é para casar, porque, nesse universo e nesse tempo em que o filme se passa, casamento é uma forma de um ser dono do outro, vai contra o que os personagens acreditam. Mas viver junto, morar junto, se entregar junto… Ah! Isso, sim! A cena em que Ciro e Marcela estão deitados e a câmera fecha em seus rostos enquanto eles trocam beijos e carícias é de uma ternura genial. “Você já é uma poesia, eu não preciso fazer uma poesia para você”, diz Ciro, em uma declaração de amor nada piegas. Pelo contrário, ela é extremamente genuína, pela forma como é dita e pelo sentimento que desperta. É uma cena que faz você se apaixonar pelo filme. E foi ali que ele me ganhou.
Por isso “Cão Sem Dono” é também um filme sobre um cara apaixonado. É sobre o momento, também vivido na fase em que se amadurece, no qual se entende que paixão e amor são coisas diferentes. Ciro passa a amar Marcela, e somente quem já sentiu a dor da perda em um relacionamento entenderá o inferno pelo qual ele passa. O desfecho é fantástico, e depois de tanta pedrada, pode fazer você se perguntar se não é um sonho do protagonista. Acredite no que quiser. Brant e Ciasca acertam em cheio naquele último sorriso e no fade final, sem concluir a história, deixando o público um pouco suspenso no ar por um misto de comoção, esperança e alegria.
“Cão Sem Dono” é um filme muito autoral, que não segue fórmulas do romance ou do drama que costumamos ver no cinemão. E nem poderia. O que acho bacana é que o estilo de filmar segue o mesmo estilo de viver dos personagens. As cenas não possuem muita movimentação. Tal como em “Crime Delicado”, Brant opta por uma câmera mais quieta, apesar de ela estar na mão o tempo todo. Os planos são calmos, como se fôssemos colocados ali apenas para observar os personagens. A fotografia do ótimo Toca Seabra (que já havia trabalhado com Brant e Ciasca em “O Invasor”, adotando um estilo totalmente diferente) usa muita luz natural. Os sets não têm quase nenhuma decoração, é tudo muito realista. Por isso, também, o filme cria uma identificação tão grande, porque parece que estamos vendo coisas do dia-a-dia, que pertencem ao mundo em que você vive. Os diretores fazem um retrato muito autêntico e acrescentam ainda momentos de puro lirismo, com os personagens declamando poemas e textos literários – reflexos de um lado mais intelectual e erudito de Brant que começou a ser desvelado em seu filme anterior.
É pouco provável que “Cão Sem Dono” alcance um grande público. Mas é muito possível que ele acerte em cheio aqueles espectadores que não só se identifiquem com os personagens, mas que estejam abertos a um cinema livre e simples, sem grandes preocupações com plasticidade, mas profundamente humano naquilo que tem a dizer e a mostrar.