A cena-chave de “Tropa de Elite” talvez seja o debate entre os alunos na sala de aula, no qual a maior parte da turma passa a condenar o abuso de poder da polícia, enquanto apenas um deles, Matias (André Ramiro), a defende, já que faz parte dela e sua maior preocupação é se tornar um policial honesto. “Se tornar”, afinal, Matias é jovem e idealista. Não é à toa que o último plano do filme é uma tela em branco que surge no auge da tensão e do clímax da história deste personagem (cuja função de coadjuvante ou protagonista é discutível). O que ele decidiu fazer? No que ele vai se transformar dali em diante? Ou coloquemos de outra maneira: no que nós, do lado de cá da tela, vamos pensar a respeito de tudo aquilo que nos foi mostrado?
Padilha deixa a tela em branco para que o espectador a preencha. Ele deliberadamente não termina o filme, pois sabe que aquela história não acaba ali e que sua função não é tirar conclusões ou dar respostas. Talvez seja por Padilha colocar o dedo do espectador no gatilho, ali, naquele momento, que tantas discussões têm surgido, afinal, é inegável que a maior parte das pessoas assiste a um filme esperando que ele lhe fale alguma coisa, e não o contrário.
Não acredito que “Tropa de Elite” seja um filme perigoso. Talvez a palavra mais adequada seja “difícil”. É um filme feito para instigar o debate, mas sabemos que é muito pouco provável que as pessoas sairão de um multiplex de shopping (onde exibições duplas ou triplas do longa acontecem simultaneamente) e farão uma rodinha para conversar sobre o que viram. Vão falar é do Capitão Nascimento e incorporar seus jargões no dia-a-dia – igualzinho aconteceu com um certo Zé Pequeno cinco anos atrás.
Não estou querendo dizer que o público é burro, não. É uma questão cultural mesmo, todos sabem disso: o público brasileiro não debate cinema. Entendo perfeitamente uma pessoa que assiste a “Tropa de Elite” e diz que “tem que fazer é isso mesmo com bandido”. Na minha casa eu ouço esse tipo de coisa, e olha que ninguém lá viu o filme ainda. Mas a questão é: Padilha também pensa assim?
Acho que o maior mérito do diretor, afora sua habilidade técnica, é justamente não deixar clara uma posição. A frase de divulgação, “Uma guerra tem muitas versões”, é perfeita, porque estamos no meio de uma guerra civil em que nem mesmo a sociedade sabe se posicionar direito. Por que, então, um filme (e “Tropa de Elite”, por melhor ou pior que seja, é apenas um filme), deveria dizer o que é certo e o que é errado? Esse tipo de pensamento maniqueísta é que exime qualquer debate de propósito. O filme é de esquerda ou de direita? Capitão Nascimento é herói ou não é? Puxa vida, o que isso realmente importa?
Sobre essa questão do heroísmo do Capitão Nascimento, primeiro temos que nos perguntar que tipo de heroísmo é esse de que se fala. E existem tantas definições, que não fica muito claro aonde se quer chegar. Segundo os principais dicionários brasileiros, o conceito de herói (do latino heros… do grego héros…) presume que se fala de “pessoa que por qualquer motivo é centro de atenções”, ou “protagonista de qualquer aventura histórica ou drama real”, ou “indivíduo notabilizado por sua coragem, tenacidade, abnegação, magnanimidade etc.”, ou “indivíduo capaz de suportar exemplarmente uma sorte incomum (p.ex., infortúnios, sofrimentos) ou que arrisca a vida pelo dever ou em benefício de outrem”, ou “homem que se distingue por coragem extraordinária na guerra ou diante de outro qualquer perigo”, ou “indivíduo que desperta enorme admiração; ídolo”, e por aí vai.
Capitão Nascimento se encaixa em qualquer um desses enunciados, logo, é o herói do filme. O problema, creio eu, não é ele ser um herói, mas ser um herói falho de uma história que acontece muito próxima da nossa realidade (e quando digo “nossa” me refiro à realidade brasileira – ou alguém acha que haverá tanta celeuma lá fora e o longa não será considerado o sucessor de “Cidade de Deus” como novo melhor filme brasileiro?). Além disso, Nascimento faz parte do BOPE, que, acima de qualquer eufemismo, é um grupo de extermínio. Aí, sim, o terreno se torna perigoso. Uma coisa é ver James Bond matar terroristas, outra completamente diferente é colocar Wagner Moura como torturador de pivete. Mas vai saber se o espectador comum que assiste aos dois filmes no mesmo cinema terá essa percepção?
“Tropa de Elite” pode acabar se tornando um filme sem lugar fixo: virou um grande fenômeno comercial, mas na consciência do público (espectadores e crítica) talvez continue vagando entre pontos de vistas que vão de um extremo ao outro. Aliás, em duas conversas sobre o longa, ouvi duas pessoas da crítica se posicionarem de formas opostas em relação ao filme anterior de Padilha, “Ônibus 174”: uma dizendo que o documentário apóia a execução do seqüestrador, outra que Sandro é retratado como vítima do sistema; já eu vejo um pouco de cada coisa, mas não penso que o filme se resuma apenas a questões deterministas dessa forma.
Quanto a “Tropa”, não o vejo como enaltecedor da violência em nenhum momento. Pelo contrário, através da narrativa scorsesiana adotada por Padilha, vejo Capitão Nascimento como o fio condutor da história, tal como o personagem de Ray Liotta em “Os Bons Companheiros” (que, nem por isso, é considerado uma apologia ao tráfico e à máfia, é?). Claro que somos instigados a torcer por Nascimento, já que ele é o policial honesto, atormentado pela natureza de seu trabalho e pelas conseqüências causadas em sua vida pessoal. Ainda por cima, é interpretado por um ator carismático. É engraçado vê-lo coordenando o curso de recrutamento? Sim. Tanto é que o parafraseei neste texto. Mas você ri quando, em outra cena, ele chega em casa transtornado e grita com a esposa como se ela fosse um subordinado incompetente ou um fogueteiro do morro?
“Tropa de Elite” deve ser entendido nesses aspectos. Seu herói é um herói questionável, e existem outros no filme que não são apenas da polícia. Por que ninguém problematiza o heroísmo do traficante que acredita manter a paz na favela, ou da estudante que dirige uma ONG, mas não dispensa um bequezinho, ou do policial estudante que coloca a vida dos colegas em risco ao esconder sua profissão, ou do “aspira” que faz uso da corrupção para o “bem” da polícia e acaba colocando um parceiro em perigo? Querer que um filme que, acima de tudo, fala sobre questionamentos de caráter, moral e ética diga alguma coisa, é vê-lo da forma errada. Quem tem que dizer algo (não digo nem “fazer algo”, pois seria utopia) somos nós. O problema, repito, é: o público brasileiro está preparado para debater?
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.