Este é um dos temas principais do filme: o que nos define nos nossos relacionamentos? Aquilo que sentimos ou aquilo que os outros sentem em relação a nós? Devemos ser egoístas até que ponto? Shelly faz essas perguntas e suas respostas, quando surgem, não soam moralistas. Ela reflete sobre as conseqüências das atitudes de seus personagens, como se fossem a reação de qualquer ação. Assim, quando Jenna (na sensibilidade taciturna de Keri Russell) se envolve com seu médico (Nathan Fillion, mais uma vez ótimo), a diretora não está defendendo o adultério em função da infelicidade da personagem. Na verdade, ela dá a Jenna uma opção de tentar mudar de vida, tal como qualquer um de nós poderia ter. O filme não diz que as pessoas devem seguir seus impulsos e paixões somente por seguir, mas, sim, pelas razões certas, já que há outras pessoas envolvidas. E por mais que Earl (Jeremy Sisto) seja um bruto e desvalorize Jenna, ele é uma pessoa e possui sentimentos (seu problema é que ele nunca experimentou o sabor da própria torta). Ao mesmo tempo, Shelly demonstra ter consciência da maneira como as pessoas, às vezes, se enganam em seus próprios julgamentos. Tome como exemplo a cena em que Jenna condena sua amiga por estar tendo um caso: uma louvável auto-crítica que adiciona uma camada a mais de personalidade ao roteiro.
Shelly foi tragicamente assassinada após concluir o filme, deixando os apreciadores do bom cinema precocemente órfãos de uma cineasta que se mostrava tão promissora. Felizmente, seu talento na escrita ainda poderá ser apreciado uma última vez em um roteiro que deixou pronto, “Serious Moonlight”, que será filmado por sua colega de elenco em “Garçonete”, Cheryl Hines. Porém, suas qualidades como atriz cômica e, principalmente, enquanto diretora, encerram-se aqui. Shelly demonstra a ingenuidade de uma iniciante na guia de algumas cenas, mas na maior parte do tempo mostra que sabe como usar a técnica em função do estilo. Ela sabe onde usar um travelling e quando começar um plano-seqüência. Sabe como brincar com a mudança de ânimo de sua personagem no timing certo e como rodar com a câmera em torno dela e do médico enquanto se beijam, transformando o clichê em um recurso metalingüístico que funciona comicamente. Shelly, enfim, sabe como assinar um filme e “Garçonete”, sendo seu último trabalho como diretora, representa uma obra singular de qualquer modo. É uma torta com um coração colocado no meio, como a canção diz.
direção: Adrienne Shelly; com: Keri Russell, Nathan Fillion, Cheryl Hines, Jeremy Sisto, Adrienne Shelly, Lew Temple, Eddie Jemison, Andy Griffith; roteiro: Adrienne Shelly; produção: Michael Roiff; fotografia: Matthew Irving; montagem: Annette Davey; música: Andrew Hollander; estúdio: Night and Day Pictures; distribuição: 20th Century Fox. 108 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.