“A Lenda de Beowulf”, sua última aventura com o uso de motion-capture, de certa forma representa uma decepção ainda maior do que “O Expresso Polar”. O foto-realismo buscado na caracterização dos personagens evoluiu bastante, sem dúvidas, mas não deixa de ser irônico constatar que o monstro Grendel é muito mais convincente do que os humanos, que deveriam parecer (ora!) reais. Por ser uma criatura fantasiosa, você se sente mais impressionado por ela do que pelos guerreiros, que não passam de simulacros de pessoas. Continuam lá os movimentos sem peso (a cena em que eles cavalgam é risível), os olhares mortos (deviam piscar mais) e a textura borrachuda da pele. A não ser quando há um close-up e os animadores podem se concentrar nos movimentos dos lábios e dos músculos faciais, salientando ainda os poros e pêlos que cobrem seus rostos, os humanos vistos em planos mais abertos parecem tão reais quanto os humanos de “Shrek”.
O aspecto geral dos personagens é até adequado para a história contada, se considerarmos que eles poderiam ter saído de ilustrações encontradas no tipo de literatura a que pertence o poema no qual o filme se baseia. Porém, Zemeckis não consegue encontrar um balanço entre o visual estilizado e o realismo extremo observado nos close-ups e na movimentação de alguns personagens (como um anão que aparece em determinado ponto). Isso se torna uma distração, como já havia acontecido em “O Expresso Polar”, pois você passa a se preocupar em observar se aqueles na tela são retratos fiéis de Angelina Jolie ou Anthony Hopkins, ao invés de se sentir envolvido pela história – o que acaba por minar os esforços do respeitado escritor Neil Gaiman e do roteirista Roger Avary, que narram a lenda do título não num tom de aventura enlatada, mas como uma fábula trágica. Este, aliás, talvez seja o melhor ponto do filme todo.
Ainda que o roteiro tenha boa fluidez, a carência por cenas de ação mais criativas pode decepcionar aqueles que esperam por momentos eletrizantes. Desses, a luta contra o dragão tenta ser o auge, mas o primeiro ataque de Grendel é mais eficiente. Sem dúvidas, ver o filme no formato 3-D deve ser mais divertido. Na versão convencional, exibida na maioria dos cinemas, são claramente perceptíveis as cenas em que o efeito tridimensional é provocado, com lanças e espadas apontadas na direção do espectador, pedras e pedaços de madeira voando de um lado a outro da tela, pessoas sendo arremessadas e girando no ar até a queda, e por aí vai. Sem falar nos planos tradicionais de Zemeckis, nos quais a câmera voa através dos cenários geralmente seguindo algum objeto, que devem se beneficiar muito do 3-D. Mas este é um fator que não deve ser considerado numa análise crítica de “A Lenda de Beowulf” enquanto cinema. Seria, se o filme tivesse sido feito apenas para ser visto com os óculos especiais, como se a técnica fosse intrínseca à narrativa. Não é. Portanto, tudo que pode se aproveitar dela é apenas uma atração, como se o longa fosse um brinquedo de um parque de diversões. Assim, quem for a um cinema convencional pode se sentir diante de uma montanha-russa sem carrinho.
De qualquer forma, é bom ver que Zemeckis cria cenas bastante fortes, sem fugir da violência para conseguir uma censura baixa e atrair mais espectadores. Nunca foi feita antes uma animação 3-D em Hollywood com tamanha quantidade de sangue derramado, membros decepados e personagens mortos. Sem falar nas referências sexuais e o caráter nada correto do protagonista. É assumidamente um filme não-infantil – dizer que é adulto já seria exagero.
direção: Robert Zemeckis; com: Ray Winstone, Robin Wright Penn, Anthony Hopkins, Angelina Jolie, Crispin Glover, Brendan Gleeson, Chris Coppola, John Malkovich, Alison Lohman; roteiro: Neil Gaiman, Roger Avary; produção: Steve Bing, Jack Rapke, Steve Starkey, Robert Zemeckis; fotografia: Robert Presley; montagem: Jeremiah O’Driscoll; música: Alan Silvestri; estúdio: ImageMovers, Shangri-La Entertainment; distribuição: Warner Bros. 113 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.