Essa mistura de cinema verité com ficção não é novidade – qualquer um que tenha visto um pequeno filme chamado “A Bruxa de Blair” sabe disso. E, hoje em dia, com equipamentos de filmagem à disposição de virtualmente qualquer pessoa que tenha um celular com câmera, o estilo usado pelo diretor estreante Matt Reeves (pupilo do produtor J.J. Abrams) é perfeito para dialogar com um público que é bombardeado diariamente por imagens de YouTube e realities shows.
O ultra-realismo fantástico de “Cloverfield” acaba por gerar uma renovação do gênero inaugurado por Godzilla. O longa nada mais é do que uma situação hipotética em que os personagens de um desses filmes pegam uma câmera e filmam a história do ponto de vista deles. E é isto que aproxima a experiência de assisti-lo a algo que vai além do cinema: é praticamente uma atração temática. Afinal, se fosse feito da forma tradicional, o filme se tornaria um desastre tão colossal quanto o provocado pela criatura que invade Nova York na tela. A história, se analisada de forma isolada, é um amontoado de clichês e dificilmente funcionaria sozinha. Por isso tem-se a impressão de que a trama é apenas um tema – pense em um brinquedo de um parque de diversões, como se no lugar do monstro que ataca a cidade, fosse, digamos, um avião em pane em pleno vôo, ou um barco sendo inundado. O enredo não passa de um pano de fundo. O que conta aqui é como você reage ao filme, graças ao uso da câmera em primeira pessoa, que torna a experiência subjetiva. E neste ponto Reeves e sua equipe são perfeitamente bem sucedidos. Tudo é muito bem feito, das situações de perigo, que conseguem gerar tensão, aos efeitos digitais usados para colocar o monstro entre os prédios de NY, sem nos “tirar” daquela realidade.
Na criação do mockumentary (algo que Abrams já havia experimentado em um episódio antológico da saudosa série “Felicity”), Reeves nos leva a querer que o filme aconteça “como na vida real”. É nisso que ele também cria um incômodo, porque os personagens se comportam exatamente como se estivessem em um filme de ação. Um bom exemplo é a cena em que o grupo tenta escapar pelo túnel do metrô e o rapaz que carrega a câmera passa a agir como alívio cômico. Vejamos: se fosse na “vida real”, seria bastante improvável que aquelas pessoas não estivessem desesperadas, uma vez que a cidade está indo abaixo e um bicho que nunca ninguém viu na vida acabou de dobrar a esquina. Por outro lado, em um filme de gênero você não espera nada além daquilo mesmo: os personagens caminham tranquilamente, fazem piadas e, de repente, algo os ataca.
É preciso ter em mente o tempo todo que “Cloverfield” é um filme de ficção filmado como cinema verdade, nada mais. É algo fundamental para se aproveitar a jornada. Algumas vezes você pode até se pegar querendo que a violência seja mais forte e que as criaturas menores geradas pelo monstro-mãe saiam arrancando a cabeça da galera. Porém, isso também faria a destruição da cidade – que inegavelmente ecoa o 11 de Setembro – ser mais real. Isso acentuaria ainda mais o desconforto e tornaria o filme desrespeitoso – mais do que já é, se formos pensar direito. Afinal, não se passaram nem dez anos dos atentados. Uma cena como aquela em que uma nuvem de poeira toma uma rua após o desabamento de um prédio ainda causa forte impressão, já que é praticamente idêntica a uma das mais famosas imagens da fatídica queda das Torres Gêmeas. Nesse caso, não sei até onde a coragem de quebrar um tabu (atitude própria do gênero horror) não fere a ética. Uma coisa é “Vôo United 93”, outra é filme pipoca. E é por “Cloverfield” transitar o tempo inteiro entre uma esfera e outra que um meio-termo se faz tão necessário.
direção: Matt Reeves; com: Mike Vogel, Odette Yustman, Lizzy Caplan, Michael Stahl-David, T.J. Miller, Jessica Lucas; roteiro: Drew Goddard; produção: J.J. Abrams, Bryan Burk; fotografia: Michael Bonvillain; montagem: Kevin Stitt; estúdio; Bad Robot, Paramount Pictures; distribuição: Paramount Pictures; 85 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.