No mesmo dia, fui ao cinema ver “Senhores do Crime” e não pude deixar de notar como David Cronenberg retrata a violência de uma forma muito, mas muito mais realista. É próprio do cineasta fazer cenas sem reservas para a censura ou para espectadores fracos do estômago. E da mesma forma como faz em “Marcas da Violência”, aqui ele serve ao público um bife mal-passado, daqueles tão suculentos que minam sangue a cada garfada.
Cronenberg nos deixa cientes o tempo todo sobre quem aqueles personagens são e o que eles fazem. Este é um filme sobre um grupo de criminosos do submundo: eles cortam gargantas, decepam dedos e furam olhos. E não duvide de que você verá exatamente isso na tela. Eis aqui um diretor que faz valer o dinheiro que você pagou no seu ingresso, como se seguisse o princípio do “você quer ver um filme violento, então você vai ver.”
Ao mesmo tempo em que compartilha esse conceito com “Marcas da Violência”, “Senhores do Crime” é um filme narrativamente mais ambicioso, mas não tão intrigante. Enquanto em “Marcas” o mundo do crime organizado é descoberto pelo protagonista e pelo público, em “Senhores” Cronenberg adota um tom mais grandioso para contar a história, levando o espectador ao universo já existente da máfia russa. Se no primeiro filme o protagonista (Viggo Mortensen) explora uma nova realidade junto com o espectador, no segundo o público fica mais ao lado da personagem de Naomi Watts, observando um pouco mais à distância o que acontece entre os criminosos – ainda que, mais tarde, ela se envolva diretamente com eles.
Não é que o personagem de Mortensen aqui seja um coadjuvante. Pelo contrário: boa parte do longa se desenvolve em cima de seu papel. Sem falar que ele protagoniza o grande momento do filme – a já famosa cena da sauna – que resume com perfeição as habilidades de Cronenberg na direção: os ângulos, os cortes, o som. Esta única seqüência é muito mais tensa, ágil, dinâmica e eletrizante do que a carreira inteira de Michael Bay.
E o cineasta também mostra que é um ótimo diretor de atores. Cronenberg valoriza as expressões faciais de seus intérpretes o tempo todo, filmando a maior parte dos diálogos em primeiro plano. Mortensen, em especial, se destaca e parece ter encontrado seu tom certo sob a batuta do canadense. A calma com que Mortensen constrói um sorriso ou levanta a sobrancelha (chega a ser apavorante o modo como cada ruga surge em seu rosto em determinados momentos) faz desse seu melhor papel até agora.
“Senhores do Crime” é uma companhia perfeita para “Marcas da Violência”. Não é um filme tão sublime quanto seu predecessor, mas forma um par muito bem-vindo dessa “fase mafiosa” de Cronenberg, que não só comprova o grande cineasta que ele é, como também o torna mais acessível ao grande público.
direção: David Cronenberg; com: Viggo Mortensen, Vincent Cassel, Naomi Watts, Armin Mueller-Stahl, Sinéad Cusack; roteiro: Steven Knight; produção: Robert Lantos, Paul Webster; fotografia: Peter Suschitzky; montagem: Ronald Sanders; música: Howard Shore; estúdio: Serendipity Point Films, BBC Films, Focus Features; distribuição: PlayArte. 100 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.