Duas cenas em “Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal” são emblemáticas na forma como estabelecem o momento que o herói vive na linha do tempo da série e também da História, com “H” maiúsculo. Para evitar estragar a surpresa de quem ainda não assistiu ao filme, vale citar apenas que são cenas onde o herói permanece em primeiro plano, no canto do quadro, enquanto algo grandioso acontece na tela. Nessas duas cenas, Indiana está atônito diante do que vê, incapaz de agir, como se contemplasse o espetáculo e pensasse: “Realmente, os tempos mudaram”. Esta é uma situação que ainda não havia acontecido nos filmes anteriores, onde o personagem sempre toma uma atitude, mesmo frente àquilo que está além do alcance da ação ou da compreensão. Quase vinte anos após a última cruzada, o que Indy parece constatar é que não só o mundo mudou, mas também os enigmas que desafiam a humanidade mudaram.
Em 1935, quando Indiana Jones foi ao templo da perdição, e no ano seguinte, quando partiu na caçada à arca perdida, ainda não existiam super-heróis. Naquela época, personagens populares nas histórias de aventura ainda eram sujeitos como Zorro, o Fantasma e Tarzã. Portanto, George Lucas e Steven Spielberg sabiam muito bem a que período da História alguém como Indy pertencia quando o criaram. Somente em 1938, quando a busca pelo cálice sagrado se fez necessária, é que surgiu o Superman, o primeiro herói com poderes sobre-humanos, e, a partir daí, os ídolos da cultura pop jamais foram os mesmos. Não obstante, ainda exista, naquele final de década, uma certa ingenuidade no imaginário das pessoas em relação às possibilidades do fantástico nas mídias modernas (cinema, TV e rádio). Lembremos que foi também em 1938 que Orson Welles causou um pânico estapafúrdio nos ouvintes com sua interpretação radiofônica de “Guerra dos Mundos”, feita ao vivo como um noticiário. A cavalgada rumo ao pôr do sol em “Indiana Jones e a Última Cruzada” pode ser vista como símbolo do fim de uma era, não apenas da ficção-científica (que, diferente do que é comumente estabelecido, não envolve apenas elementos futuristas), mas também da História – já que no ano seguinte a Segunda Guerra Mundial se consolidaria – e do Cinema, uma vez que, após 1989, ano de lançamento do último longa da franquia, os filmes de aventura e ação passaram a incorporar a tecnologia nas tramas e na produção de maneira agalopante.
Agora, Spielberg e Lucas trazem Indiana Jones de volta às telas, com a promessa de um filme old-school, sem os cortes rápidos que definem o cinema de ação contemporâneo e com o mínimo de trucagens feitas através da computação gráfica. Ao mesmo tempo, os pais do blockbuster americano têm a tarefa de situar Indy em uma época que não é mais dele, e isso tanto dentro da série (agora a trama se passa no fim dos anos 50) quanto no imaginário do público da era “Matrix”. É aí que reside o maior desafio deste quarto filme – e a solução encontrada tem seu quê de brilhantismo, mas também de controvérsia, por ousar incorporar elementos que ainda não haviam sido vistos em um filme de Indiana Jones.
Reencontramos Indy em 1957, capturado por agentes soviéticos que precisam do herói para localizar um artefato misterioso, que está guardado em um certo “Hangar 51” (exatamente), onde o governo americano armazena toda sorte de objetos que alimentam inúmeras teorias da conspiração e reportagens de tablóides sensacionalistas. A líder do grupo é Irina Spalko (Cate Blanchett, em uma deliciosa caricatura), que deseja roubar o que restou do acidente aéreo ocorrido em Roswell, em 1947.
Se você conhece a obra de Spielberg e Lucas, sabe onde eles querem chegar com isso e talvez se desanime, afinal, você quer ver “Indiana Jones” e não “Arquivo X”. Mas vamos a outra rodada de referências históricas, a começar por o ano de 1957 estar localizado na segunda fase da Guerra Fria, marcada pela corrida espacial. Foi neste ano que a União Soviética colocou em órbita o primeiro satélite artificial, o Sputnik 1, levando os EUA a darem início ao seu próprio programa (a NASA seria fundada pouco tempo depois, em 1958). Portanto, da mesma forma como vimos os nazistas perseguirem artefatos bíblicos na tentativa de adquirirem o poder supremo em “Os Caçadores da Arca Perdida” e “A Última Cruzada”, agora vemos a KGB alucinada por um segredo que pode dar ao soviéticos várias voltas de vantagem na exploração do espaço.
Se na História existem fatores que tornam a trama de “O Reino da Caveira de Cristal” coerente (vale lembrar ainda que, naquele ano, o mundo estava há mais de uma década na era nuclear, em pleno acirramento do desenvolvimento bélico-atômico), também se encontra na ficção-científica um boom de elementos que correspondem à época. É nesta década que filmes sobre “homens do espaço” começam a ser feitos. Personagens como Buck Rogers e Flash Gordon, criados entre os anos 20-30, são redescobertos, assim como os super-heróis (dando início a uma outra guerra, entre DC Comics e Marvel, declarada oficialmente nos anos 60).
A inserção do elemento extraterrestre na mitologia de “Indiana Jones” faz sentido. A citação a “Star Wars” (que talvez só os fãs peguem), em um momento chave, é genial. O problema é que Spielberg e Lucas mostram demais, o que causa um contraste muito grande entre o novo filme e os anteriores. Sente-se que há uma ligação diegética enquanto a jornada de Indy se concentra apenas nos indícios da presença alienígena – como os desenhos gigantescos no deserto peruano ou as pinturas na caverna, coisas meio “Eram os Deuses Astronautas”. Mas quando a sugestão vira evidência, o estranhamento é inevitável. Spielberg e Lucas afastam o espectador principalmente em uma determinada cena (novamente sem spoilers) que seria equivalente a mostrar um senhor de barbas brancas soltando raios pelas mãos quando a arca da aliança é aberta em “Os Caçadores da Arca Perdida”.
(Algo curioso em “O Reino da Caveira de Cristal” é que o filme confronta sistemas de crença. Para o público da série, é mais aceitável o misticismo religioso, por ser algo que vem da antiguidade e era pouco explorado pelo cinema de aventura dos anos 80, do que a mitologia científica, que é mais recente e já é um tema desgastado na cultura pop contemporânea. Assim, um alienígena se torna algo bobo perto de, por exemplo, um cavaleiro imortal que protege o Santo Graal durante séculos. A ironia disso é que, num sentido contrário, existe na sociedade ocidental, desde o século passado, um ceticismo crescente em relação à religião, enquanto a crença na ciência e na tecnologia, no pragmatismo e na exatidão, se tornou mais forte – principalmente, ora, ora, a partir da segunda metade do século 20, época à qual Indy pertence agora.)
A proposta de Spielberg e Lucas em manter a cronologia exata, seguindo a idade de seu protagonista, é talvez o que de melhor existe em “O Reino da Caveira de Cristal”, já que o longa, como um conjunto, acaba se revelando inferior aos três anteriores. Apesar de a trama não ser tão tola quanto parece, o roteiro de David Koepp é escasso daquilo que mais tornava as aventuras de Indy cativantes: o humor. Alguma ou outra piada funcionam, mas faz falta um Marcus Brody ou um Sallah ao lado do herói, já que Mac (Ray Winstone) se revela o menos adequado de seus parceiros. Indy também está mais ranzinza (sinal da idade ou do pessimismo da época, talvez), mas ainda consegue ser charmoso (como prova sua declaração de amor para Marion, um exemplo isolado de bom diálogo entre muitas falas pouco inspiradas) e disparar boas tiradas, especialmente na sua relação com Mutt (Shia LaBeouf). Aliás, o tema do pai ausente está aqui, como em todos os filmes de Spielberg. E o cineasta deixa claro neste filme que sua obsessão pelo assunto serve, não para externar uma mágoa, mas para afirmar a importância da família e promover sua reintegração.
Quanto às cenas de ação, novamente Koepp não consegue se equiparar aos outros filmes da série e cria apenas uma seqüência memorável e empolgante, que se passa na selva amazônica. Há outros momentos que remontam ao estilo clássico do gênero, como a perseguição de carros na cidade (no melhor estilo “De Volta Para o Futuro”) ou a descoberta da cidade perdida, com cenários móveis e nenhum indício visível de tela verde. Mas nenhum deles será lembrado como a corrida de carrinhos na mina de ferro ou o duelo na ponte em “O Templo da Perdição”. Por outro lado, é notável a durabilidade dos planos, promessa cumprida por Spielberg para deixar o espectador ver que são pessoas de verdade que estão na tela e que elas estão realmente fazendo aquelas peripécias. O uso do CGI é inevitável em algumas cenas e não fazem tanto mal (afinal, se essa tecnologia já estivesse disponível nos anos 80, certamente ela seria utilizada). Os únicos momentos que incomodam são, não por coincidência, aqueles que envolvem animais, que nunca soam verossímeis como os insetos, cobras e ratos enfrentados por Indy antes (aliás, existe uma colônia de toupeiras que deixa evidente a má influência de George Lucas no roteiro).
“Indiana Jones e o Reino da Caveira de Cristal” não é e nem precisava ser o melhor da série. É apenas uma boa diversão, apesar de não representar, nem de longe, um momento dos mais inspirados de seus realizadores. A nostalgia é correspondida, provocando aquele sorriso inevitável a cada vez que o tema do maestro John Williams ressoa em pequenas doses, até tomar a trilha sonora por completo. Talvez o que impeça este quarto longa de ser ainda melhor seja o próprio fato de ele se concentrar, não em ser um filme de aventura, mas um filme de homenagens – à época, à História, à ficção-científica, ao Cinema e, principalmente, ao próprio Indy.
direção: Steven Spielberg; com: Harrison Ford, Cate Blanchett, Karen Allen, Shia LaBeouf, Ray Winstone, John Hurt, Jim Broadbent, Igor Jijikine; roteiro: David Koepp; produção: Frank Marshall, Kathleen Kennedy, George Lucas; fotografia: Janusz Kaminski; montagem: Michael Kahn; música: John Williams; estúdio: Lucasfilm, Paramount Pictures; distribuição: Paramount Pictures. 124 min