E por que não as duas coisas?
Andy e Larry Wachowski deixaram meio mundo com o pé atrás depois das continuações de “Matrix” – o filme-referência dos últimos dez anos quando o assunto é ação e ficção-científica. Eles podem ter cometido um erro ao se dedicarem àquela franquia, não em função da história que quiseram contar, contrariando a expectativa de muitos, mas por terem ficado presos à própria estética verde-zinco que conceberam. E como ficou claro na saga de Neo e seus colegas de Zion, a busca por libertação é o tema preferido dos irmãos.
Esta é a minha defesa dos Wachowski: eles são cineastas talentosos, que conseguem criar imagens com um nível de detalhe e equilíbrio como poucos fazem hoje em dia no cinema de entretenimento. É isso também que me leva a acreditar que “Speed Racer” é um blockbuster subversivo, o tipo de filme que você vê pela primeira vez e fica incerto se realmente gostou, ou se entendeu porque gostou. De qualquer forma, é impossível ficar indiferente ao que está na tela, seja pelas incontáveis cores que piscam a todo o momento, seja pela forma como as cenas são feitas, quase sempre fugindo do convencional. É simplesmente diferente e ousado – atributos que, independente do gosto pessoal do espectador, fazem as pessoas pensarem e falarem (bem ou mal) sobre o que viram. E esta é uma das funções da arte.
Primeiro, é preciso entender que se trata de um cartoon filmado. Em nenhum momento, os diretores fazem qualquer coisa na tela parecer live-action. Os atores estão lá, alguns pedaços de cenário certamente estavam no set, o carro do protagonista chegou até mesmo a ser trazido ao Brasil em tinta e lata como prova de que é real. Mesmo assim, esses são apenas elementos utilizados pelos Wachowski na criação do filme. Eles praticamente fazem um trabalho de recortes e colagens, como vemos, por exemplo, quando o rosto de um ator cruza a tela como forma de fazer a transição de uma cena. Um rosto em close-up também pode ser usado em cenas onde o cenário se converte em um amálgama de cores que correspondem à emoção do personagem (por exemplo, se alguém está frustrado, o fundo parece se desmanchar). É um estilo semelhante ao da animação japonesa.
Não é que os Wachowski estejam criando algo inédito aqui. Eles simplesmente se apropriam da cartilha do animê e a transportam para o cinema. Já vimos outras adaptações que levam à risca o meio no qual são baseadas, como Robert Rodriguez e Frank Miller e os quadrinhos de “Sin City”, ou Steven Soderbergh e o filme noir em “O Segredo de Berlim”. Não podemos nos esquecer também que Quentin Tarantino usa tantas referências em “Kill Bill” quanto os próprios Wachowski já haviam feito em “Matrix”.
Então, por que um cartoon filmado é subversivo? Por que é relevante de alguma forma? Além do fato de esta ser uma megaprodução que utiliza milhões de dólares de Hollywood para adaptar algo que é do gosto de um nicho do público, e não da mesma garotada que cresceu lendo “Homem-Aranha”, a resposta para essas perguntas é: a maneira como os Wachowski fazem a apropriação do material original. Eles conseguem combinar as duas linguagens, do animê e do cinema, de uma forma orgânica, sem que você olhe e diga: “Por que apenas não passam o desenho no cinema?”
É o híbrido dos dois conceitos narrativos que acaba resultando em algo novo, que incorpora ainda a linguagem do videogame. E isso não é um demérito, principalmente se pensarmos em termos de identificação visual. Creio que é preciso fazer uma pesquisa de campo para se chegar a alguma conclusão, mas não é absurdo imaginar que as pessoas que jogam os games de hoje e vêem os desenhos animados de hoje (não me restrinjo às crianças) vão se sentir mais confortáveis diante de “Speed Racer” do que aquelas que não acompanharam a evolução imagética desses meios nos últimos dez anos. E isso envolve a decupagem, a velocidade dos cortes, a movimentação e o posicionamento da câmera, a perspectiva – enfim, a direção.
Pode-se questionar as habilidades dos Wachowski como roteiristas (eles realmente precisam ser menos auto-indulgentes), mas no que diz respeito à composição dos quadros e à criação de cenas de ação, é muito difícil batê-los. Junto com o montador Zach Staenberg (com quem trabalham desde “Ligadas Pelo Desejo”), os irmãos são tão hábeis na construção do ritmo vertiginoso das seqüências, que chega um momento em que você parece levitar da cadeira por alguns instantes e ser levado pelas imagens. É quase um transe, uma sensação que é sentida especialmente nos momentos finais da última corrida disputada por Speed.
Eles realmente sabem como prender a atenção nessas cenas e mergulham de cabeça no clima de desenho animado. Como os próprios diretores disseram, eles usam uma nova modalidade de arte marcial, o “car fu” – tanto é que numa determinada cena, o locutor diz que o carro de Speed deu uma “voadora” no adversário para tirá-lo da pista. Além disso, os Wachowski utilizam, em algumas cenas específicas, um efeito 2-D próprio da animação, colocando tudo em foco e sem profundidade de campo – o que é capaz de causar um estranhamento natural no espectador.
Da mesma forma, o uso exagerado de cores básicas e quentes também provoca uma reação. É um filme exuberante, mas não é John Waters. O que o distancia do kitsch é que os Wachowski mantém uma harmonia. São muitas cores, mas elas não aparecem de maneira aleatória. Existe ali uma combinação de padrões. Chama a atenção também a preocupação com os detalhes. Logo no início podemos perceber a palavra “go” formada entre as pequenas rachaduras no couro do tênis de Speed e, ainda na mesma seqüência, o reflexo da roda de um carro no vidro do relógio da sala de aula, demonstrando a obsessão do personagem com corridas.
O problema é que a hiperestilização dos Wachowski se torna cansativa com o tempo, porque o filme é muito longo e não tem história para duas horas e quinze minutos. Há situações que se estendem demais, como a apresentação do império do empresário Royalton (que mais parece um tour pela fábrica de chocolate de Willy Wonka) e os inúmeros flashbacks, além de uma cena de luta que envolve todos os membros da família de Speed.
A família, aliás, é um dos pontos mais interessantes do filme e que também vai contra a tendência hollywoodiana. Hoje em dia, é difícil ver um protagonista de um filme de aventura e ação que não tenha algum problema em casa: ou os pais são separados, ou o pai é ausente, ou ele vive com os tios ou avós… Já aqui, finalmente temos uma família unida, que se gosta e que se valoriza. Não é a toa que a saída do irmão de Speed de casa é o principal conflito da trama. Temos um pai que protege e apóia os filhos, uma mãe que é generosa e carinhosa. Mesmo o irmão caçula, apesar de estar concentrado em suas traquinagens, demonstra preocupação com Speed. E, mais uma vez, os Wachowski aplicam aqui o princípio do exagero, já que fazem questão de sempre levar a família inteira junto com o protagonista, seja para torcer por ele da arquibancada, para subir no pódio ou mesmo para dar um puxão de orelha. O tema do indivíduo contra o sistema (utilizado pelos Wachowski em “Matrix” e “V de Vingança”) está novamente presente, mas agora o núcleo é a família.
Posso ter sido um tanto eloqüente neste texto, mas me vejo na obrigação de levantar tantos pontos favoráveis em relação ao filme porque é bem provável que ele seja mal compreendido agora. Talvez a geração de espectadores para a qual ele foi feito ainda esteja muito nova para escrever uma crítica. Dessa forma, a má impressão inicial pode até durar alguns anos, mas acredito que, futuramente, “Speed Racer” será reconhecido como um trabalho extraordinário e influente.
direção: Andy Wachowski, Larry Wachowski; com: Emile Hirsch, Susan Sarandon, John Goodman, Christina Ricci, Matthew Fox, Roger Allam, Paulie Litt, Kick Gurry, Rain, Richard Roundtree, Scott Porter; roteiro: Andy Wachowski, Larry Wachowski (baseado no desenho animado criado por Tatsuo Yoshida); produção: Grant Hill, Joel Silver, Andy Wachowski, Larry Wachowski; fotografia: David Tattersall; montagem: Zach Staenberg, Roger Barton; música: Michael Giacchino; estúdio: Warner Bros. Pictures, Silver Pictures; distribuição: Warner Bros. 135 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.