Todos os filmes de M. Night Shyamalan são extremamente conceituais. E, na maioria das vezes, os resultados obtidos pelo cineasta variam de ótimo a excelente. É um tanto decepcionante, portanto, que após o martirizado “A Dama na Água” (um bom filme incompreendido por muitos), Shyamalan tenha optado por voltar ao gênero suspense com “Fim dos Tempos”.
Essa decepção, no entanto, não significa que o filme seja ruim. Longe das pedras que grande parte do público e da crítica tem atirado, “Fim dos Tempos” se sustenta como nova tentativa do cineasta de se impor como autor dentro do mainstream de Hollywood. Inevitavelmente, suas melhores intenções não são bem recebidas pela maioria, já que os estúdios ainda não conseguiram descobrir uma forma adequada para vender um filme de Shyamalan sem enganar o espectador com a promessa de que o diretor, um dia, voltará a fazer outro “O Sexto Sentido”.
Verdade seja dita, Shyamalan não escolheu trilhar o mesmo caminho de Steven Spielberg ou de Alfred Hitchcock, cineastas com os quais ele já foi largamente comparado (e ainda pode ser, já que continua dialogando com temas do primeiro e seguindo como bom aluno as lições de ritmo e estilo ensinadas pelo “mestre do suspense”, a quem não perde a oportunidade de homenagear). Hoje, é mais adequado ver Shyamalan como novo membro da turma de diretores da qual fazem parte Brian De Palma, John Carpenter e George A. Romero. Numa mesma prateleira, é ao lado deles que os filmes de Shyamalan ficam mais bem posicionados. Afinal, desde “A Vila”, ele vem fazendo um cinema muito mais alegórico. Da mesma forma como constrói o suspense e provoca o susto a partir do que está fora de quadro, ele expressa seus descontentamentos e medos em relação ao mundo através daquilo que está subentendido na tela.
Em “Fim dos Tempos” não é diferente. Por baixo de uma história apocalíptica sobre a revolta do meio-ambiente contra os maus tratos do ser humano, está um manifesto implícito sobre a forma como as pessoas têm tratado não apenas a natureza, mas, principalmente, umas às outras. Para Shyamalan, o verdadeiro apocalipse está na sociedade – e já está acontecendo, como na metáfora de “A Guerra dos Mundos”.
O problema aqui é que Shyamalan parece não se esforçar muito para contar uma história e se contenta apenas com o conceito dela. No filme, as pessoas já estão se matando mesmo antes da epidemia de suicídios (que nada mais é do que uma representação simbólica). Seja pela poluição do planeta, pelas guerras e conflitos religiosos ou pela renúncia do ser humano a conceitos básicos como comunidade, compaixão e solidariedade, a natureza não quer ser levada junto e trata de exterminar os homo sapiens para não morrer também. Shyamalan faz alusões a todos esses problemas durante o filme, só que elas surgem de uma forma (ironicamente) não orgânica no roteiro, como se tivessem sido colocadas lá à força, sem seguir um fluxo narrativo natural.
Da mesma forma, os personagens de “Fim dos Tempos” não são bem desenvolvidos e se comportam mais como simulacros das ideias de Shyamalan do que como pessoas que estão vivendo aquela situação. O protagonista, o professor de biologia Elliot (Mark Wahlberg), percebe que sua esposa, Alma (Zooey Deschanel), está se distanciando dele e teme que o casamento entre em crise. Mas ele ainda a ama e quer tentar salvar o relacionamento. É risível que eles se preocupem em discutir a relação enquanto o mundo parece estar acabando, mas… É só isso mesmo? Não é o motivo fútil da preocupação de Alma justamente uma crítica à jovem que se casou cheia de dúvidas e mal sabe lidar com uma atração fugaz que sente por outra pessoa? E não é Elliot uma simples representação do ser humano tentando se reconectar com a sua… Alma? E a senhora (Betty Buckley) que eles encontram durante a fuga: não é ela o último estágio do isolamento a que as pessoas parecem se submeter simplesmente por descrença ou medo do outro – medo este que gera raiva e se confunde com um instinto torto de autoproteção (como vemos na cena dos garotos que tentam forçar a entrada em uma casa)?
O “problema” (ênfase nas aspas) com Shyamalan é que ele faz filmes que parecem ser high-concept (isto é, de tramas simples e fáceis de vender), porém ele não os desenvolve meramente em cima do enredo, mas, sim, no que está nas entrelinhas. “Fim dos Tempos” não é um filme sobre árvores assassinas ou pessoas fugindo do vento. As plantas reagem às emoções das pessoas acima de qualquer outra coisa. É como se aquilo que o botânico diz a Elliot tomasse uma dimensão extrema, como se as plantas tivessem se tornado hipersensíveis à energia que os humanos liberam de acordo com o que estão sentindo. Quando se sentem ameaçadas, elas utilizam isso como mecanismo de defesa e processam uma espécie de fotossíntese que, ao absorver as energias negativas, produz um gás tóxico ao invés de oxigênio ou libera uma substância nociva que é carregada pelo ar.
O que acontece com as plantas é simples, embora nunca provado. Enquanto a mídia provoca confusão com supostas explicações científicas contraditórias sobre a causa dos suicídios em massa, inúmeras pistas apontam que a resposta está em sentimentos básicos do ser humano, como amor e ódio (dicotomia, por sinal, que representa como os filmes de Shyamalan passaram a ser recebidos). A manchete do jornal que diz que o número de assassinatos aumentou na Filadélfia já explica porque a cidade é afetada pela toxina. E se tudo começa em Nova York, há uma relação clara com o 11 de Setembro. O medo e a paranoia, então, acabam por piorar a situação, já que impedem que as pessoas vejam que aquilo que pode imunizá-las é, justamente, ficarem calmas e se reaproximarem umas das outras. É aqui que o anel do humor de Elliot se mostra importante e, também, onde Shyamalan se mostra mais irônico: os personagens que sobrevivem não percebem o motivo de terem se salvado.
“Fim dos Tempos”, assim como “A Vila”, não é para ser visto ao pé da letra. Sua história é típica de um episódio de “Além da Imaginação”, narrado na forma de uma parábola. É um filme onde o que é dito ou mostrado pode ter outro significado além do literal, como, por exemplo, a fala do oficial ferroviário: “Perdemos contato com todos”.
Neste filme, Shyamalan parece esconder ainda mais aquilo que quer dizer, como se tivesse enterrado um tesouro para ser encontrado por quem realmente está disposto a fazer novas leituras de seus filmes. Aqui, é possível interpretar suas ideias, apesar de todos os problemas do roteiro, que além da estrutura pouco coesa e de personagens superficiais, conta com uma estranha mistura de humor com terror. Esse é o filme de classificação indicativa mais alta de Shyamalan, com cenas gráficas e pesadas. Mas, ao mesmo tempo, nunca ele fez tanta graça, o que acaba por quebrar o clima de suspense e faz com que os momentos de tensão funcionem isoladamente, quase como se ele dissesse: “Agora é hora de levar susto, pessoal!” Além disso, sente-se uma desorganização geral na soma dos temas que ele aborda, sendo que alguns, como o desinteresse dos jovens pelo estudo, não aparentam ter uma conexão com o todo.
Por outro lado, o estilo de filmar do diretor continua consistente e sua assinatura é rapidamente identificada. Isso tanto nos enquadramentos (sempre bem compostos, com equilíbrio na disposição dos objetos e atores no quadro) quanto nos planos característicos de seus filmes: close-ups extremos, câmera na mão fazendo o ponto de vista do espectador, além da elegante movimentação dos planos-sequências. E novamente o sucesso das cenas de suspense se deve não ao que o diretor mostra, mas ao que ele esconde (especialmente em duas cenas que envolvem mortes com armas de fogo). Já quando decide ser explícito, ele também é bem sucedido, graças ao apoio da equipe de efeitos especiais que se empenhou bastante nas cenas mas violentas.
“Fim dos Tempos” não é livre de falhas, mas a essência do cinema de Shyamalan está lá, mesmo que crua. É um filme de horror estranho e incomum, um encontro entre o desconhecido de “Os Pássaros”, a metáfora de “Vampiros de Alma” e o pacifismo de “O Dia em que a Terra Parou”, resultando em algo como um “eco-exploitation”. E se Shyamalan diz que sua intenção era fazer um “filme B sofisticado” (como as atuações e a trilha sonora atestam), que seja. É um filme B bonito à beça. ■
FIM DOS TEMPOS (The Happening, 2008, EUA/Índia)
direção: M. Night Shyamalan; com: Mark Wahlberg, Zooey Deschanel, John Leguizamo, Ashlyn Sanchez, Betty Buckley, Spencer Breslin, Robert Bailey Jr.; roteiro: M. Night Shyamalan; produção: M. Night Shyamalan, Barry Mendel, Sam Mercer; fotografia: Tak Fujimoto; montagem: Conrad Buff; música: James Newton Howard; estúdio: 20th Century Fox, Blinding Edge Pictures, Spyglass Entertainment, Barry Mendel Productions; distribuição: 20th Century Fox. 91 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.