“O Incrível Hulk” é um excelente filme de ação sobre um monstro que se transforma em super-herói. O melhor, no entanto, é que esta nova versão do gigante da Marvel pode co-existir tranqüilamente com o “Hulk”, de Ang Lee – que é um excelente drama sobre um homem comum que se transforma em um monstro. Um filme não anula o outro e, agora, parece que as duas facções de fãs do personagem podem ficar contentes.
Dirigido por Louis Leterrier (“Carga Explosiva”, “Cão de Briga”), o longa evita a todo custo a abordagem psicológica e introspectiva do filme de Lee. A mudança no tom pode ser percebida até mesmo nos flashbacks, que aqui não são sobre a infância difícil de Bruce Banner ou trazem alusões a suas emoções reprimidas. Agora, o que Banner vê quando adormece ou quando está no banho são explosões e metralhadoras disparando em sua direção. Além disso, o roteiro se concentra exclusivamente no enredo: o que você lê na sinopse é o que você vê na tela. E isso é bom, porque a proposta é ser um comic book movie, pop da cabeça aos pés e que não pára para refletir. O filme acontece num estalar de dedos.
Pode-se dizer que o filme de Lee é sobre Bruce Banner e o de Leterrier é sobre o Hulk. E este realmente se liberta naquilo que o anterior era contido: a ação. De todos os filmes de super-heróis, este é um dos mais agitados, não tenha dúvidas. Eu sei quando uma cena me deixa empolgado quando me afasto do encosto da poltrona e me apóio com os cotovelos sobre as pernas – isso aconteceu várias vezes enquanto Hulk corria, pulava, socava as coisas e gritava com toda força. Temos na tela dois monstros em um confronto de pura raiva, e aquele efeito “Uau!”, que os robôs de “Transformers” provocaram em suas brigas no ano passado, repete-se aqui, mas de uma maneira muito mais visceral e animalesca. Afinal, o Hulk é isso: uma criatura que têm seus instintos libertados e vive uma experiência selvagem e descontrolada.
Leterrier prova ter sido a escolha certa para o tipo de filme que a Marvel queria. Ele parece ter baseado suas seqüências de ação não em storyboards, mas em uma verdadeira HQ, já que utiliza bastantes planos de detalhe e closes, variando com planos mais abertos em que vemos a ação acontecer à distância, sem que a montagem rápida interfira na cognição das tomadas. Além disso, ele movimenta a câmera com elegância ao criar pequenos planos-seqüência. Enfim, Leterrier sabe o que é filmar e utiliza um grafismo que recria momentos próprios da HQ (você sabe o que Hulk faz quando “esmaga”). Mas mesmo que ele consiga construir essas cenas arrebatadoras de ação, nenhuma delas se equipara àquela em que Hulk duela contra a chuva. É um dos grandes momentos dessa onda de adaptação de quadrinhos, tendo uma beleza ao mesmo tempo fílmica e pictórica.
Não é que Leterrier demonstre realmente ter grandes ambições artísticas e deixe você superempolgado para ver seu próximo filme. Embora não se revele um esteta que mereça ser laureado (o tique da câmera lenta para enaltecer determinados momentos da ação é problemático), o diretor se coloca bem a frente de outros que contam com tão pouca experiência quanto ele. Tomara que faça filmes ainda melhores, mas se acabar como aquele tipo de cineasta que tem um grande hit e não consegue construir uma carreira consistente e duradoura, Leterrier certamente já será bem lembrado por este “O Incrível Hulk”.
Outro grande responsável pelo triunfo do filme é Edward Norton. Ele faz um Bruce Banner bastante diferente da versão de Eric Bana, que construiu um personagem muito mais reprimido, tímido e perturbado. Você percebe no olhar de Norton que sua versão também tem muitas emoções contidas, mas o que se destaca em sua atuação é que, a todo momento, Banner está exercendo um imenso controle sobre si mesmo. Não é como se algo o prendesse. Ele tem uma atitude mais ativa para resolver sua situação, ao contrário do personagem de Bana, que era mais passível em relação ao seu problema. O que é compreensível, na verdade, já que o Banner de Norton parte em busca de uma solução, enquanto o de Bana ainda está entendendo o que é se transformar no Hulk.
Mas apesar da lógica dessa comparação, logo no início “O Incrível Hulk” deixa claro que não é uma continuação do filme de 2003. A seqüência de abertura é uma recapitulação rápida e objetiva de como Banner se transformou naquela criatura, e vemos que esse pequeno prólogo nada tem a ver com a história contada por Lee. Mas não se espante: isso é algo comum nas HQs, onde existem mais de uma versão para a origem de diversos personagens (aliás, gosto pensar nos dois filmes como se fossem revistas sobre um mesmo herói, mas escritas e desenhadas por artistas diferentes).
Veja também a diferença no General Ross de William Hurt: ele não é tão zangado e carrancudo quanto o de Sam Elliot, mas a imponência típica dos militares também está presente em seu semblante. Hurt só está mais vilanesco, o que pode ser um ponto positivo (por deixar suas intenções claras) ou negativo (por deixá-lo unidimensional). Já a Betty Ross de Liv Tyler pode não ser etérea e segura como a de Jennifer Connelly, mas consegue capturar a delicadeza da personagem, o que serve como contraponto perfeito para a bruteza interior de Banner. Enquanto todos gritam, “Porrada! Porrada!”, ela é a menina que entra na roda e, com um simples “Pára!”, separa os brigões que se esmurram no pátio do colégio.
Um dos personagens novos é o soldado quase aposentado Emil Blonsky, vivido por Tim Roth. Ao contrário de Banner, ele se mostra disposto a ir de encontro à transformação proporcionada pela radiação gama, já que vê nisso a oportunidade de não apenas recuperar a virilidade juvenil, mas de se tornar um semideus. É como se Blonsky fosse a tradução literal do que Banner diz no filme de Lee: “Quando eu perco totalmente o controle, eu gosto.” E o desejo de usar as possibilidades dessa biotecnologia também está presente em outros personagens, particularmente no Dr. Samuel Sterns (que os fãs dos quadrinhos sabem exatamente em quem vai se transformar numa provável continuação).
Isso também é bacana no novo filme: assim como “Homem de Ferro”, ele faz diversas referências ao universo da HQ. Certamente, trata-se de uma orientação da Marvel, que agora produz seus filmes por contra própria e já deixou claro que vai cruzá-los até culminar em “Os Vingadores”. O bom é que a “casa das idéias” não está apenas dando piscadelas para os fãs. Ao planejar essa interseção, a Marvel está também dialogando com uma base de espectadores que nunca leram os quadrinhos. Assim, quando o nome S.H.I.E.L.D. surgir novamente num filme da Marvel, o público vai fazer a ligação com “O Incrível Hulk” e “Homem de Ferro”. É muito interessante participar dessa construção e ver como ela vai se desenvolver em seguida.
Se existe algo que incomoda em “O Incrível Hulk” é o humor demasiado que surge durante os momentos em que Banner e Betty estão juntos, com direito a piadinhas e uma cena de trânsito que parece ter saído diretamente de uma comédia. É um humor que pertence mais a um filme do Homem Aranha e, aqui, parece deslocado. Percebe-se que a intenção é aliviar a tensão, mas, mesmo assim, soa além do tom. Só não se sabe quem escreveu essas cenas, se Zak Penn ou Edward Norton (que não recebe crédito de roteiro na tela, aliás).
Para nós, brasileiros, ainda há o atrativo de ver as cenas rodadas no Rio de Janeiro e que ficaram muito boas, especialmente por não estereotiparem a favela. A Rocinha aparece como uma locação como outra qualquer, sendo retratada de forma sincera: é um local de periferia como sabemos que é. Além disso, é bom ver Edward Norton comendo arroz e feijão e tentando aprender o nosso português. Até mesmo as improvisações no barraco onde ele vive foram bem reconstituídas, com direito à gambiarra na torneira da pia. (Um extra a parte é que quando a ação nos corredores da favela começa, até esperamos que alguém na platéia grite: “Pede pra sair, zero dois!”, já que os soldados que sobem o morro lembram muito os integrantes do BOPE.)
Referências e homenagens à antiga série de TV não faltam: desde o título “O Incrível Hulk”, que é o mesmo do seriado, até à incorporação do tema-musical na trilha sonora, além da divertida participação especial de Lou Ferrigno. Sem falar que o truque que faz os olhos de Banner ficarem verdes realmente funciona e é muito bem-vindo de volta.
Quanto aos efeitos visuais, a Rhythm and Hues faz um trabalho de primeira, principalmente nas texturas, o que torna a pele do Hulk (que agora é um verdadeiro monstro, e não um Eric Bana gigante e verde) bem mais realista e nada borrachuda. Apenas a movimentação, em alguns momentos, evidencia o CGI. Mesmo assim, a animação não deixa de ser surpreendente e natural nas cenas de briga, quando Hulk e Abominável misturam-se com o cenário.
Enfim, “O Incrível Hulk” não só é um grande filme de super-herói, de quadrinhos e de ação, mas também é um “filme de macho” cheio de vigor, como poucas vezes se faz hoje em dia. É o antídoto ideal para quem acompanhou a namorada numa sessão de “Sex and the City” na última vez em que foi ao cinema.
direção: Louis Leterrier; com: Edward Norton, Liv Tyler, Tim Roth, William Hurt, Tim Blake Nelson, Ty Burrell, Lou Ferrigno; roteiro: Zak Penn (e Edward Norton, não creditado); produção: Avi Arad, Kevin Feige, Gale Anne Hurd, Stan Lee; fotografia: Peter Menzies Jr.; montagem: Rick Shaine, John Wright; música: Craig Armstrong; estúdio: Marvel Studios; distribuição: Universal Pictures.
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.