Aliás, o curta “Presto”, que precede o longa, já demonstra a intenção do estúdio. Apresentado como “um cartoon da Pixar”, o filme sobre um coelho que decide se rebelar contra o mágico que o tira da cartola não possui falas (como a maioria dos curtas da Pixar) e funciona exatamente como um desenho animado antigo: são as expressões faciais dos personagens e seus gestos exagerados, assim como o uso da trilha sonora a cada vez que algo dá errado, que formam sua linguagem. Aliás, a Pixar poderia ter ido mais longe em sua homenagem/resgate e ter feito deste o seu primeiro curta 2-D, já que a computação gráfica, apesar de bem acabada como é de praxe do estúdio, não é essencial aqui.
Mas em “WALL•E” há uma revolução. Não só a tridimensionalidade é necessária, como trata-se do filme mais ousado da Pixar por colocar nos ombros do diretor Andrew Stanton e da equipe de animadores toda a responsabilidade de contar uma história baseada numa linguagem plenamente visual, cujos personagens principais são robôs que não possuem músculos faciais e nem mesmo uma boca. É aí onde o trabalho da Pixar passa a ser minimalista: tanto em WALL•E, o protagonista, quanto em EVE, sua parceira, as expressões se baseiam principalmente nos olhos. Eles também se comunicam – entre si e com o espectador – através da linguagem corporal, mas as emoções estão mesmo é nos sutis movimentos das lentes binoculares de WALL•E ou na simples mudança do padrão de leds no visor de EVE. Aliás, se alguma referência ao cinema de Charles Chaplin deve ser lembrada, que seja a belíssima e tocante troca de olhares do vagabundo com a florista em “Luzes da Cidade”, que aqui encontra sua rima cibernética.
A introdução de “WALL•E” – que compreende o primeiro contato do público com o protagonista e no estabelecimento da Terra como um planeta devastado pelo lixo acumulado – já pode ser colocada entre os grandes momentos da história do estúdio e da animação. A sensação de solidão que essas cenas passam chega a ser angustiante: ao som da melancólica e profética trilha sonora de Thomas Newman, vemos aquela antiga metrópole entulhada, sem qualquer sinal de vida, apenas pó e mais pó, no chão e no ar. Então, surge uma pequena criatura vagando entre pilhas de detritos e sujeira mais altas que prédios, num cenário futurista e apocalíptico (e, ainda que soe contraditório, esse é um lixo bonito de se ver). Tomamos conhecimento da vida daquele robô, que segue o que foi programado para fazer: juntar, compactar e empilhar. E como qualquer um que trabalhe de acordo com uma rotina, WALL•E demonstra estar cansado de fazer sempre as mesmas tarefas há centenas de anos, construindo aquelas verdadeiras pirâmides formadas por objetos inúteis, para um objetivo inútil.
Durante a labuta, WALL•E coleciona todo tipo de artefato curioso que encontra pelo caminho e também recolhe peças repositórias de outros modelos iguais a ele, para o caso de eventuais acidentes. WALL•E, aprendemos, tornou-se auto-consciente (tema clássico da ficção-científica) e adquiriu hábitos e sentimentos humanos. Cuida até mesmo de um bicho de estimação. Curiosamente, é através de um videocassete que ele assiste ao musical “Alô, Dolly!” e encontra o seu ideal de felicidade: segurar a mão de alguém. Muito puro e muito simples.
É quando o filme chega ao seu ponto alto: a história de amor que começa no segundo ato, com a chegada de EVE à Terra. E não é só pelo fato dos robôs serem carismáticos ao extremo. Primeiro, porque ambos são muito bem desenhados (ele é quadrado e amarelo, o que indica sua função de limpeza e ao mesmo tempo seu design ultrapassado; já ela é moderna, lembra um i-Pod e possui formas arredondadas). Além disso, eles também são “dublados” com eficácia, o que mostra que o trabalho de Ben Burtt na criação das vozes e dos sons dos robôs sem dúvida é tão importante quanto o dos animadores.
É esse conjunto que faz com que o relacionamento de WALL•E e EVE se torne muito cativante. Dá-se um sorriso a cada cara de bobo que ele faz toda vez que olha para ela e decide tentar impressioná-la. Ver os dois se conhecendo e se apaixonando ao longo do filme é encantador, e as inserções da música “It Only Takes a Moment”, em que se ouve o verso, “And that is all that love’s about…” (“essa é a essência do amor”), pontuam muito bem dois momentos-chave do romance deles: o descobrir e compartilhar e a importância da memória – que além de fazê-los funcionar, também revela a existência de algo que não é racional correndo em seus circuitos.
Os primeiros 40 minutos do filme atingem a perfeição e provavelmente serão lembrados no futuro como parte de um clássico do cinema. E quando você pensa que o filme vai se concentrar apenas naqueles dois robôs, WALL•E parte atrás de EVE de carona no foguete que a trouxe à Terra e conhece a nave AXIOM (cujo design carrega um monte de referências a filmes de ficções-científicas, como “Jornada nas Estrelas”, “Alien” e “Star Wars”). Neste momento, uma trama paralela começa a se desenvolver ao conhecermos o que restou da humanidade e o filme faz uma crítica ferrenha ao consumismo e ao sedentarismo a que nós, hoje, estamos cada vez mais acostumados. É mais uma prova de ousadia da Pixar, já que estamos falando de um “filme para família” e ainda por cima lançado pela Disney (não seria irônico ver alguma rede de fast-food distribuir WALL•Es como brinde?).
No entanto, nesta segunda metade, o longa parece ceder à obrigação de dar uma missão que os personagens precisam cumprir e se aproxima mais de uma animação de hoje em dia. O que não é inteiramente negativo – só carece da mesma ambição da primeira parte. A impressão que se tem é que o roteiro passou por revisões até ficar mais “amigável” para o público casual e para as crianças, tornando-se assim um filme mais simples e bonitinho com o qual a Disney pode voltar a fazer muito dinheiro com a Pixar (como de fato está fazendo). Mais uma vez, não é que a simplicidade seja ruim, porque, afinal de contas, a história dos humanos é bem contada (faltam algumas informações importantes, como, por exemplo, mostrar que a AXIOM possui um “arquivo de DNAs”, o que mais na frente será necessário, mas não é nada que você não deduza). E mesmo nessa parte, os diálogos são muito poucos e a narrativa visual continua a fazer do filme praticamente um livro de história ilustrado.
Talvez pelo mal costume que nós, adultos, temos em relação aos filmes da Pixar, fica sempre um desejo de que exista ali algo um pouco mais complexo, e esquecemos que o público infantil desses filmes é bem maior e, certamente, é o público-alvo. O que existe nas animações da Pixar que atrai os adultos são os detalhes, as referências, a nostalgia e os temas. E tudo isso está incluído aqui. Note, por exemplo, no cuidado da escolha dos objetos que WALL•E coleciona: o videogame Atari, o modelo antigo do videocassete, os brinquedos – são todos objetos que, hoje mesmo, já são considerados velhos, portanto, nada mais adequado do que estarem num mundo que virou um ferro-velho. E outro ponto que certamente vai ser mais impactante para os adultos é a visão de Stanton (também autor do argumento junto com Pete Docter, de “Monstros S.A.”) de um mundo controlado por uma corporação, algo que é constatado na onipresença da companhia Buy n Large (o nome é praticamente um mantra repetido copiosamente pela sociedade do filme).
A existência desse subtexto mais adulto em “WALL•E” é o que mais deixa clara a evolução de Stanton como cineasta, já que até então ele era o responsável pelos dois filmes da Pixar mais voltados para as crianças: “Procurando Nemo” e “Vida de Inseto”. Pode-se notar, aliás, que Stanton manteve um ponto comum entre seus três filmes, justamente aquele que é mais atrativo para os pequenos: o grupo de amigos do protagonista, todos eles excêntricos. Em “Vida de Inseto”, é a trupe do circo de pulgas. Em “Procurando Nemo”, é a turma de peixes de aquário. Em “WALL•E”, são os robôs defeituosos (o melhor deles sendo M-O, que é o que mais se identifica com WALL•E, já que ambos pertencem à mesma “classe trabalhista”).
Enquanto, na primeira metade, Stanton mostra uma visão e um estilo de direção bem diferentes do que estamos acostumados a ver numa animação, mesmo nas da Pixar, na segunda metade ele volta a adotar um estilo mais convencional. É aí que vemos o martírio que é “ter que contar uma história”. Afinal, até então, o cineasta estava apenas preocupado em estudar WALL•E e EVE, a interação entre eles, e desenvolvê-los. A primeira metade não tem plot. É só aqueles dois robôs se conhecendo e brincando. É a melhor parte do filme por isso. Depois, quando Stanton “tem que contar uma história”, ele também parece muito preocupado em fazer referências a “2001: Uma Odisséia no Espaço” (é o olho vermelho de HAL 9000 no robô AUTO; é o capacete na cabine do capitão; é o uso de “Danúbio Azul” e “Assim Falou Zaratustra” na trilha). Sem falar que ele acaba por criar dois personagens humanos que não representam muito ganho para a trama, a não ser simbolizar a transgressão e adicionar mais duas referências bíblicas que, honestamente, não convencem (a idéia da Axiom ser uma Arca de Noé funciona melhor).
Mas esses problemas são mais distrações do que incômodos. Afinal, o filme tem uma atmosfera tão envolvente, que é bem capaz de você esquecer que está vendo uma animação até que o primeiro humano da AXIOM apareça. Há um comprometimento muito grande com a verossimilhança, tanto no fotorrealismo dos objetos e cenários, quanto no próprio trabalho de câmera de Stanton, que, assim como Brad Bird em “Os Incríveis” e “Ratatouille”, filma como se estivesse num set de verdade (repare que ele insere até mesmo pequenas imperfeições em algumas cenas, como zooms para corrigir o enquadramento ou o foco). Além disso, os humanos aparecem pela primeira vez em live-action num filme da Pixar, um marco na filmografia do estúdio. Representados por figurantes e pelo ator Fred Willard em monitores de TV, eles são a prova daquilo que a Pixar acredita: se é para parecer que eles são pessoas de verdade, sem traços caricaturais e estilizados, por que não usar pessoas de verdade? Sem essa de motion-capture para imitar a realidade.
Na minha cabeça, o “WALL•E” ideal seria um pouco mais cerebral, com uma história mais apropriada para um filme que tentasse se aproximar de “2001”, ao invés de apenas homenageá-lo. Mas acho que foi exatamente isso que Stanton, Disney e Pixar quiseram evitar, para fazer algo menos pessimista em relação ao próprio homem. E quer saber? Fizeram bem. Conseguiram trazer de volta aquela magia de estarmos diante da tela, como acontece em filmes como “E.T. – O Extraterrestre” ou “O Senhor dos Anéis”. Stanton não se distancia totalmente de uma abordagem mais obscura e própria da ficção-científica, especialmente em relação à natureza dos sentimentos de WALL•E e EVE. Não é que ele tente ser um “Kubrick para crianças”, mas mostra que sabe até onde pode nadar e ainda encostar o pé na areia. Tomara que “WALL•E” permita que, no próximo filme, ele vá ainda mais longe.
direção: Andrew Stanton; com: Fred Willard e as vozes de: Ben Burtt, Elissa Knight, Jeff Garlin, John Ratzenberger, Kathy Najimy e Sigourney Weaver; roteiro: Andrew Stanton e Jim Reardon (argumento de Andrew Stanton e Pete Docter) ; produção: Jim Morris; fotografia: Roger Deakins (consultor visual); montagem: Stephen Schaffer; trilha sonora: Thomas Newman; estúdio: Pixar Animation Studios ; distribuição: Walt Disney Pictures/Buena Vista International. 103 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.