“Minha teoria está provada. Demonstrei que não há diferença entre mim e outro qualquer. Só é preciso um dia ruim para reduzir o mais são dos homens a um lunático. Essa é a distância entre o mundo e eu… Apenas um dia ruim.”
Nesses dias em que violência e sobrevivência são palavras que não apenas rimam, mas praticamente se pertencem nas capas dos jornais e em noticiários na TV, é mais do que apropriado que um personagem como o promotor público Harvey Dent seja quase um protagonista em “Batman – O Cavaleiro das Trevas”. Utilizando uma moeda como pretexto para decidir dilemas no “cara ou coroa”, ele tem como lema a máxima: “Cada um faz a sua própria sorte.” Mas que sorte é essa quando a barbárie da criminalidade envolve até mesmo aqueles que deveriam zelar pelo cumprimento da lei e a segurança da população?
Não, eu não vou iniciar aqui uma discussão sobre a escalada da violência e a corrupção policial. Esses são temas já estabelecidos, dos dois lados da tela, quando o filme tem início. A figura do Homem-Morcego já está instituída e Gotham vê nele exatamente aquilo que Bruce Wayne projetou em “Batman Begins”: um símbolo que, através de um exemplo dramático, levou as pessoas a respeitá-lo e os criminosos a temê-lo. Não só isso: levou outros como ele, ansiosos por fazer justiça com as próprias mãos, a imitá-lo. O que está em debate agora é justamente o que pode ser feito, por cidadãos, políticos, policiais e, claro, o super-herói, para conter a violência e salvar Gotham, representação do mal conjurado do mundo. E onde esta continuação hiperproduzida e rotulada como um sucesso predestinado se torna tão distinta entre tantos outros filmes sobre justiceiros mascarados, alados, mutantes, é em sua antítese: o que este Batman nos diz é que o mundo não precisa de heróis.
O entrave disputado por Bruce Wayne com o próprio Batman é um tema que se sobressai, uma vez que ele vê sua idealização de justiça se reverter e colocar em risco as pessoas mais próximas e também a segurança de Gotham como um todo. O herói que decide abandonar o fardo não é assunto inédito: também nos segundos filmes do Superman e do Homem-Aranha, vimos esses personagens se tornarem indivíduos comuns, só que por motivos pessoais. Batman também tem motivos pessoais, mas sua razão é essencialmente política.
Uma vez que a população passa a depositar nos ombros do herói a solução para acabar com a violência, ele se torna a imagem da segurança. Mas o que o diretor-roteirista Christopher Nolan (juntamente com seu irmão Jonathan Nolan, com quem assina o roteiro, além de David S. Goyer, co-autor do argumento) tenta mostrar é que não é de um vigilante mascarado que este mundo realmente precisa, mas, sim, de pessoas que possam restabelecer a justiça e a ética por meios corretos e que não precisem se esconder. Não é gratuita a insistência quase obsessiva de Nolan em aproximar o universo onde o Coringa existe daquele habitado pelo assassino do Zodíaco. Sua abordagem realista, que adota a estética de um filme policial e se recusa a retratar Gotham como uma cidade de arquitetura estilizada, agora até mais do que no primeiro filme, faz pleno sentido, uma vez que seu objetivo é dialogar e não apenas impressionar.
O que faz de “O Cavaleiro das Trevas” mais do que um “filme de super-herói”, ou mesmo mais do que um thriller policial, é que Nolan cria uma peça conceitual que coloca a dimensão legitimada de “Batman Begins” a serviço de questionamentos relevantes sobre o mundo em que vivemos. Ele articula o clássico duelo do herói contra seu arqui-inimigo de forma a refletir sobre a dinâmica atualíssima entre aqueles que detêm o poder de governar e os cidadãos que eles acabam por manipular. Por isso, Dent se torna o pivô na estratégia do Coringa, que é provar que, no fundo, todo mundo pode cair diante do desespero, até mesmo o mocinho.
O Coringa (interpretado por Heath Ledger, um ator que se foi muito cedo e cuja atuação minimalista, que se desdobra em função da sociopatia do personagem, só nos faz lamentar ainda mais sua partida) é alguém que foi capaz de enxergar de fora o jogo político entre a polícia, a justiça e os criminosos. O problema é que ele usa sua genialidade para anarquizar Gotham, levá-la ao caos, ao invés de tentar reinventá-la. É isso que o torna um terrorista e o diferencia de um revolucionário. Numa relação ainda dentro dos quadrinhos, podemos dizer que o Coringa é o oposto do protagonista de “V de Vingança”. Ambos agem de formas semelhantes: usam a mídia, planejam atentados, tentam fazer as pessoas enxergarem toda a merda em volta delas. Mas V quer salvá-las, ele acredita nelas, ao passo que o Coringa é um niilista, totalmente descrente em qualquer possibilidade de salvação. E é usando o mesmo conceito da manipulação do medo visto em “Batman Begins”, só que em outro contexto, que o vilão consegue articular todas as peças do tabuleiro em seu favor. A citação no início desse texto se refere ao Coringa, mas também poderia ser direcionada a Dent ou mesmo ao Batman: eles formam um trio de aberrações, representações extremas de pessoas que se rebelam contra um suposto acaso que transforma suas vidas.
O que é interessante é que o próprio filme parece se comportar como a sorte lançada pelo “cara ou coroa” de Harvey Dent. A partir de determinado momento, quando o promotor dá indícios de que está prestes a se corromper, o filme muda de tom e de ritmo. Repare até mesmo na forma como Aaron Eckhart aparece enquadrado, com metade do rosto na sombra, antes de sua derradeira transformação. É como se ali a moeda fosse jogada para cima e caísse virada para o outro lado. Enquanto a primeira parte do filme constrói toda uma possibilidade de esperança, a segunda é a demolição de um sonho, uma descida ao inferno guiada por um demônio com maquiagem de palhaço.
Nesta segunda parte, a montagem de Lee Smith é exemplar na maneira como trabalha a narrativa multi-plot, que nunca se concentra em um só enredo. Desde o início, o filme se comporta como se fosse uma crônica de tudo o que acontece em Gotham naquele momento: ao mesmo tempo em que Bruce Wayne projeta seu novo uniforme com Lucius Fox, Harvey Dent e Rachel Dawes traçam uma estratégia para prender os líderes das principais organizações criminosas da cidade, enquanto o Coringa arquiteta seu plano e Jim Gordon tenta localizá-lo. Mas na hora final do filme, essas tramas simultâneas, que estão sempre ligadas umas com as outras, passam a correr quase em tempo real. A sensação de urgência é alimentada ainda pela incessante trilha sonora de Hans Zimmer e James Newton Howard, que assume tons de ópera e parece estar naturalmente intrínseca à construção de cada cena e ao desenvolvimento da trama. Nolan, claro, também muda de postura, já que se vê obrigado a abandonar planos corriqueiros de diálogo para se comportar como um maestro que precisa manter a harmonia no apogeu da sinfonia. Nolan é um cineasta que se posiciona atrás da história, não quer aparecer mais do que ela. Sua preocupação parece ser principalmente dirigir o todo, sem dar atenção especial a um ou outro aspecto. Assim, o estilo passa a ser coletivo.
O que está no coração do filme é que o mundo não precisa de super-heróis, mas de humanidade. Nesse sentido, e numa comparação não tão estapafúrdia, Harvey Dent pode ser visto como a representação de uma figura política como Robert F. Kennedy: alguém que inspira confiança, mas que acaba saindo de cena devido a adversidades que fogem ao seu controle. Nolan trabalha o tempo todo com a noção de que não só vale a pena, como é necessário acreditar no lado bom de cada um, acreditar que não somos apenas animais. Há uma cena que define bem esse ponto de vista, quando a música sobe a um tom angustiante e uma decisão sensata poupa milhares de vidas. Existem várias seqüências de ação, com socos, quedas, tiros e barulho no filme, todas elas ótimas. Mas é este clímax, sem nenhuma explosão, que é realmente genial.
nota: 10/10 — veja no cinema e compre o DVD
Batman – O Cavaleiro das Trevas (The Dark Knight, 2008, EUA) Direção: Christopher Nolan; com: Christian Bale, Heath Ledger, Aaron Eckhart, Michael Caine, Maggie Gyllenhaal, Gary Oldman, Morgan Freeman, Monique Curnen, Cillian Murphy, Chin Han, Nestor Carbonell, Eric Roberts, Anthony Michael Hall, Michael Jai White, William Fichtner; roteiro: Christopher Nolan, Jonathan Nolan (argumento de Christopher Nolan e David S. Goyer); produção: Christopher Nolan, Charles Roven, Emma Thomas; fotografia: Wally Pfister; montagem: Lee Smith; música: Hans Zimmer, James Newton Howard; estúdio: Warner Bros. Pictures, Legendary Pictures; distribuição: Warner Bros. Pictures. 152 min.
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.