“2 Filhos de Francisco” chegou aos cinemas em 2005 sob uma pesada nuvem de dúvidas e preconceitos, tanto por parte do público quanto da crítica: como um filme aparentemente feito sob encomenda por uma dupla sertaneja poderia ser bom, e não apenas um mecanismo de vendagem de discos? Pois Breno Silveira surpreendeu e entregou um filme tocante e sincero. O cineasta volta agora às telas com seu segundo longa, “Era Uma Vez…” e, curiosamente, aquela sensação de incerteza sobre o resultado se repete: como um filme baseado em “Romeu e Julieta” (como tantos já fizeram) e ainda tendo os morros do Rio como cenário (como tantos outros já fizeram) pode ser bom? Pois, desta vez, Breno Silveira não surpreendeu e entregou um filme tocante, sim, e sincero também, mas nada que se compare a “2 Filhos de Francisco”. Na verdade, de certa forma um filme parece seguir na contra-mão do outro.
Apesar de “Era Uma Vez…” ser mais um “filme de favela”, ele se concentra principalmente nos relacionamentos e nos personagens, e não na crítica social e na denúncia (embora estas estejam discretamente lá). É um ponto a favor, uma vez que recentes exemplos dessa safra parecem não ter mais o que dizer e apenas se repetem. No entanto, parece não haver escapatória quando se conta uma história situada numa cidade como o Rio: a violência se torna também um tema fundamental. E, de fato, um dos pontos principais na forma como a violência é retratada aqui diz respeito ao descontrole em que a situação chegou, quando não se distingue mais quem está do lado errado. Aliás, em determinado ponto próximo à conclusão, é bem capaz de o espectador fazer uma ligação direta com a recente onda de crimes cometidos pela polícia carioca, ainda que essa, aparentemente, não tenha sido a intenção do diretor.
Mas acima do Rio violento, em “Era Uma Vez…” há um Rio bonito. Logo na primeira cena do filme, ouvimos Dé (ou seria o ator Thiago Martins, já que mais tarde os dois se misturam?) declarar: “Eu moro no lugar mais bonito do mundo”. Durante a narração em off, a câmera mostra a encosta do Morro do Cantagalo tomada por inúmeros barracos e, num movimento panorâmico, nos direciona até o mar e a paisagem do litoral carioca. O Rio é essa cidade de contrastes muito fortes e algo positivo é que Breno e os fotógrafos Dudu Miranda e Paulo Souza não diferem a forma de filmar o “asfalto” da forma de filmar a favela. O filme busca uma unidade entre esses dois lados. Nesse sentido, é curioso observar também que a própria escolha do título, “Era Uma Vez…”, dita o tom de fábula que também está na fotografia, cujas cores claramente estão filtradas e formam uma atmosfera mais estilizada, não propriamente natural ou realista.
Esta é uma primeira diferença que se percebe em relação a “2 Filhos de Francisco”, onde a primeira metade chega a se aproximar do neorealismo italiano na maneira como retrata os pequenos momentos daquela família pobre, que luta para sobreviver na cidade grande sem ter o que comer. Eu ansiava por ver mais deste Breno Silveira em “Era Uma Vez…”, mas apenas na apresentação do personagem principal, quando um flashback nos dá conta do seu passado ao lado dos irmãos e da mãe, é que o diretor remonta à melhor parte de seu longa de estréia (e é um primeiro ato digno de nota graças, também, à montagem ágil e precisa durante uma partida de futebol, que prende bastante a atenção). Já o restante do filme se aproxima mais do que vimos na metade urbana de “2 Filhos de Francisco”, quando os garotos já estão crescidos e tentam a sorte em São Paulo. Não é que Breno Silveira perca a mão nesse momento. Ele apenas prefere seguir por uma narrativa mais convencional, que não suscita tanta admiração do ponto de vista estético.
Após aqueles 10-15 minutos, grande parte do filme passa a se apoiar nas atuações e no texto. No primeiro ponto, vale elogiar a boa performance de Thiago Martins, especialmente nas cenas em que seu personagem precisa enfrentar a timidez para tentar conquistar a garota, Nina – que, vivida pela estreante Vitória Frate, ao mesmo tempo parece encantada e insegura, sintomas normais para alguém que se apaixona. No primeiro encontro deles na praia, é quase inevitável não achar graça ao ver aquela garota magrinha, toda meiga, praticamente se perguntando: “O que eu faço com esse cara grandalhão e desajeitado do meu lado agora?”
Com relação ao roteiro de Patrícia Andrade, o tema do preconceito – que é o cerne da peça de Shakespeare em qualquer uma de suas iterações – está lá, mas existem muitas diferenças na adaptação (o que felizmente, e em benefício do filme, o afasta de “Maré, Nossa História de Amor”, que também neste ano utilizou “Romeu e Julieta” como base). Porém, um dos principais pontos em que “Era Uma Vez…” faz paralelo com Shakespeare – a transgressão que leva à tragédia – é também aquele em que o longa decepciona. Ao optarem por uma dita imparcialidade, Breno (autor do argumento) e sua roteirista acabam por tolher o elemento que fez “2 Filhos de Francisco” ser tão emocionante: a esperança.
Vejamos: a honestidade também é um tema muito forte aqui. O personagem principal se correlaciona com os garotos do sertão justamente por ser uma pessoa humilde, boa e íntegra, que se depara com um muro, aparentemente intransponível, ao tentar subir na vida. Não é à toa que uma das únicas cenas que realmente me tocaram é aquela em que Dé está num restaurante com Nina e o pai dela, quando chega um ex-namorado da garota e tenta se impor pela marca da camisa e o gel no cabelo, sem demonstrar um pingo de caráter ou respeito. Naquele momento, você enxerga uma direção que a história pode seguir com aquele rapaz pobre, que não desiste e quer vencer sendo honesto. Mas isso não ocorre. E da forma como o filme termina, com Breno Silveira novamente levando espectador de volta ao “mundo real” (tal como em “2 Filhos de Francisco”), a pergunta que nos fazemos é a mesma de Thiago Martins: “Existe uma solução?”
Não é que o diretor devesse tomar um lado, mas levando em conta a narrativa e a linguagem adotadas, o que menos se deve esperar de um filme que se chama “Era Uma Vez…” é que ele seja um documentário (e olha que nem esses costumam ser imparciais). Sinto que faltou uma atitude a Breno, e essa atitude devia se valer de sua licença artística para mostrar que existe, sim, uma solução e que ser humilde, bom e íntegro não precisa acabar em tragédia – seja ela shakespeariana ou não.
direção: Breno Silveira; com: Thiago Martins, Vitória Frate, Rocco Pitanga, Cyria Coentro, Paulo César Grande, Luana Schneider, Rodrigo Costa, Felipe Adler, Kikito; roteiro: Patrícia Andrade; produção: Breno Silveira, Pedro Buarque de Hollanda; fotografia: Dudu Miranda, Paulo Souza; montagem: Eduardo Hartung; música: Berna Ceppas; estúdio: Conspiração Filmes; distribuição: Columbia Pictures. 118 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.