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Vicky Cristina Barcelona

Por mais que Woody Allen geralmente seja apreciado pela inteligência de suas observações sobre a sociedade, os relacionamentos, a arte e até mesmo a condição humana, existe em seus filmes uma técnica de filmagem apurada que poucos levantam em críticas ou discussões, preferindo dar mais valor ao roteiro e ao humor irônico que se tornou a característica de sua obra. Enquanto o riso divide a atenção da platéia com o calor do romance vivido por Scarlett Johansson, Javier Bardem e Penélope Cruz, essa direção “invisível” do cineasta pode ser apreciada em sua plenitude em “Vicky Cristina Barcelona”.

O travelling, por exemplo, é suave e preciso. Allen utiliza bastante esse clássico movimento de câmera, mas em nenhum momento soa gratuito ou forçado, como se ele estivesse impondo um estilo (como faz Wes Anderson em “Viagem a Darjeeling”). Na maioria das cenas em travelling, a câmera desliza para a esquerda e pára, devagar, do outro lado, no novo quadro formado. Você quase não sente esse processo acontecer.

Outro momento de direção habilidosa é a cena em que Vicky (Rebecca Hall), Cristina (Johansson) e Judy (Patricia Clarkson) estão na galeria de arte e Cristina pergunta quem é Juan Antonio (Javier Bardem). Antes de ele aparecer, Judy explica que o verdadeiro autor dos quadros em exposição é um homem de terno de linho – e vemos que a pessoa sobre quem ela fala está logo atrás das três mulheres, desfocado em segundo plano. É muito sutil a forma como Allen resolve a cena, sem realmente mostrar o sujeito. Afinal, não interessa vê-lo e o olhar de Cristina naquele momento, que é o que mais importa na cena, está voltado para Juan Antonio, do outro lado do salão. Visualmente, a cena é equivalente àqueles momentos de desvio de atenção, em que alguém fala algo que entra por um ouvido e sai pelo outro.

Situações menores também trazem a elegância da filmagem de Allen, como numa simples cena de diálogo construída de forma a não ficar apenas no plano/contraplano. Ou mesmo numa tomada simples, como aquela em que Judy está ao telefone e é filmada de longe, entre janelas e corredores pelo lado de fora da casa. A movimentação da câmera segue uma cadência que conduz o olhar do espectador sem qualquer subterfúgio, algo que se sente especialmente nos planos-seqüências.

Embora Allen jamais privilegie o estilo de direção sobre o conteúdo das histórias que conta (é justamente o contrário: ele usa as ferramentas da linguagem cinematográfica em virtude da narrativa, por isso seus diálogos são sempre bem recebidos), “Vicky Cristina Barcelona” possui cenas esteticamente muito marcantes. Tome como exemplo a “cena do arbusto”: em duas ocasiões, quando Vicky e Juan Antonio se encontram e o que têm a dizer um ao outro não pode ser dito em público, os dois se “escondem” atrás da folhagem de uma árvore. Remete ao filme anterior de Allen, “O Sonho de Cassandra”, onde também há uma cena em que os personagens principais se protegem embaixo de galhos durante uma conversa ilícita.

Aliás, aquela primeira cena em que Vicky e Juan Antonio estão sozinhos talvez seja aonde Allen mais se mostre em “Vicky Cristina Barcelona” – e é uma seqüência fabulosa. Perceba como Allen utiliza as fusões e os close-ups em momentos precisos, finalizando com um slow motion bonito à beça. O timing é perfeito, coisa de mestre. É um tipo de direção que é uma delícia de acompanhar – como em Sidney Lumet e “Antes que o Diabo Saiba que Você Está Morto”, ou em Martin Scorsese e “Os Infiltrados”, para citar títulos recentes da obra desses cineastas, onde, assim como Allen, eles não se sobrepujam à narrativa.

Só para citar um último exemplo de precisão, temos a cena, famosa por antecipação, do beijo entre Scarlett Johansson e Penélope Cruz. É uma boa cena, não só porque é simples e nada gratuita (certo, nada inocente também), mas porque termina numa tomada que mostra Vicky admirando a experiência de Cristina e, logo em seguida, vem a reação de Doug (Chris Messina), o noivo careta, boquiaberto olhando para as duas. Nesse simples corte, de um lado da mesa para o outro, a reação da platéia é imediata. (E ainda há quem diga quem o cinema não funciona mais!)

Mas falando um pouco sobre os personagens, Vicky é quem se revela a verdadeira protagonista do filme. Os demais têm importância, claro, mas cada um deles, inclusive Cristina, funciona como engrenagem da história de Vicky, que é quem atravessa o arco dramático principal. E que ótima forma Allen encontrou para falar sobre tabus e convenções sociais que envolvem os relacionamentos humanos e a natureza dos sentimentos afetivos. São temas em que ele sempre tocou na carreira, mesmo que em breves piadas, mas que aqui são servidos como prato principal.

Cada um na platéia tira suas próprias conclusões sobre o quanto é liberal ou conservador. Mas já fica claro o quanto Allen é pungente ao levantar esses assuntos quando o grande interesse da mídia – e, por conseqüência, do público – pelo filme é o menage a trois. É só um sintoma de que sexo ainda é sinônimo de polêmica (e assim vende ingressos) e do quanto a sociedade é curiosa e ressentida em relação a certas liberdades ou formas livres de amar, se relacionar, viver.

nota: 9/10 — veja no cinema e compre o DVD

Vicky Cristina Barcelona (2008, Espanha/EUA)
direção: Woody Allen; com: Rebecca Hall, Scarlett Johansson, Javier Bardem, Penélope Cruz, Christopher Evan Welch, Patricia Clarkson, Chris Messina, Kevin Dunn; roteiro: Woody Allen; produção: Letty Aronson, Stephen Tenenbaum, Gareth Wiley; fotografia: Javier Aguirresarobe; montagem: Alisa Lepselter; estúdio: Mediapro, Gravier Productions, Antena 3 Films; distribuição: Imagem Filmes. 96 min
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