Em “Coraline”, que é baseado no livro homônimo do Lewis Carroll do século 20, Neil Gaiman (também autor do roteiro de “MirrorMask”), o Coelho Branco e o Gato de Cheshire se tornam um híbrido na figura do gato preto que acompanha a personagem principal em sua nova moradia: uma casa de três andares localizada em um campo umedecido e acinzentado. Por acaso, ela descobre um buraco profundo no solo, mas é através de uma pequena porta na parede que ela entra nesse novo mundo, quase um espelho do seu, com a diferença de que ele é colorido e agradável, seus pais lhe dão tudo que ela deseja, o garoto tagarela da vizinhança não abre a boca, e assim por diante. E a forma como a porta para esse mundo se abre é através do sono.
Gato, buraco, porta na parede, espelho, sono. Então, você diz: “Quer dizer que o filme é apenas mais uma versão de ‘Alice’, só que mais sombria e feita em animação stop-motion?” E eu digo: “Não.” Todas as citações estão lá, escancaradas, mas a grande sacada de Gaiman e do diretor Henry Selick, que adaptou o texto para a tela, é mostrar que a “família perfeita”, protótipo do sonho americano, existe apenas em um universo alternativo, onde coexiste com coisas das mais surreais e bizarras.
Diferente de Alice, Coraline (o nome é um esperto jogo de letras com “Caroline”, o que se revela perfeitamente adequado à personalidade da menina) embarca na aventura não apenas movida pela curiosidade, mas pela insatisfação com a atual condição de vida. Os pais passam por problemas financeiros e eles mal têm o que comer em casa. A garota reclama de tudo e tudo parece dar errado para ela. E depois que ela descobre essa porta e conhece a “outra vida”, aquilo parece ser a saída perfeita para seus problemas – não fosse o fato de seus “outros pais” quererem mantê-la presa lá.
É aí onde entra outro ponto forte do trabalho de Selick e Gaiman: naquele mundo atrás da parede, Coraline deixa de brincar de boneca e se torna a própria brincadeira, que se converte numa realidade assustadora e absolutamente nociva. O princípio daquele domínio onírico, ilusório e sedutor (em certo ponto, até mesmo uma sereia aparece em cena) é tirar a visão de quem lá vive. Ao trocar os olhos por botões, acaba-se com a fonte da descoberta e que permite a consciência própria. Para se adequar àquele mundo, Coraline precisaria abdicar de sua vida, literalmente. Afinal, são os olhos que dão alguns dos principais sinais de que uma pessoa está viva (e não é a toa que um dos principais esforços da animação computadorizada ainda hoje seja criar olhos os mais críveis e realistas possíveis, que não sejam de “peixe morto”).
Aliás, a genial sequência de abertura já dá a dica das intenções daquele mundo aparentemente maravilhoso, sendo assustadora (eu queria voltar a ser criança para reagir inocentemente ao trabalho de “açougueiro” daquelas agulhas) e uma delícia de se ver ao mesmo tempo. E é só o começo do fantástico trabalho de Selick e sua equipe no design dos cenários e personagens, tanto no “mundo real” (note o pescoço do pai e a arquitetura da casa) quanto no “outro mundo” de Coraline (as senhoras do andar de baixo, os cães-morcegos, a mão de agulhas que vira uma aranha, a relação entre costura e teia). Resultado que supera as expectativas depois dos também preciosos “James e o Pêssego Gigante” e “O Estranho Mundo de Jack”. Obviamente, toda a dedicação de Selick à concepção visual favorece o enquadramento do filme de uma forma geral, e dificilmente se vê aqui alguma tomada mal ajambrada.
Talvez o filme peque um pouco por forçar a entrega da “moral da história”, mas aí teremos que condenar boa parte dos contos infantis. Por todos os seus méritos, “Coraline e o Mundo Secreto” desde já pode ser considerado um dos grandes títulos do cinema de animação contemporâneo, e mostra que é não é só de Pixar que vive hoje em dia.
direção: Henry Selick; com vozes de: Dakota Fanning, Teri Hatcher, Jennifer Saunders, Dawn French, Keith David, John Hodgman, Robert Bailey Jr., Ian McShane; roteiro: Henry Selick (baseado no livro de Neil Gaiman); produção: Claire Jennings, Mary Sandell; fotografia: Pete Kozachik; montagem: Christopher Murrie, Ronald Sanders; música: Bruno Coulais, They Might Be Giants; estúdio: Laika Entertainment, Pandemonium; distribuição: Universal Pictures, Paramount Pictures. 101 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.