É uma fábula moderna, situada na Índia, sobre um menino pobre, chamado Jamal, que passa a vida apaixonado por Latika, uma garota de sua comunidade, com quem ele acaba perdendo contato diversas vezes devido aos revezes da dura vida nas favelas locais. Sua última chance de reencontrá-la, e com a qual o longa começa, surge em um famoso programa de TV, equivalente ao “Show do Milhão” de Silvio Santos. Como em todo conto de fadas, existem os vilões – e somente eles podem impedir que Jamal volte a ver Latika: o apresentador do programa, desconfiado da sorte do garoto que acerta qualquer pergunta; e o líder de uma gangue, que tomou Latika para si.
Isto é “Quem Quer Ser um Milionário”: a história de alguém que sofre muito e, finalmente, tem uma chance de redenção, a menos que o atrapalhem. Estão lá todos os elementos clássicos de uma narrativa que quer manipular o público para fazê-lo torcer pelo protagonista e vibrar com sua vitória. O que explica a exaltação em torno do filme é exatamente essa probabilidade que ele possui de conseguir levantar o ânimo das pessoas. É um filme pra cima, positivo, alegre, apesar da realidade dura que lhe serve de pano de fundo. E em tempos de crise e recessão mundo a fora, nada mais normal que esse escapismo seja um produto buscado e ofertado.
O problema de “Quem Quer Ser um Milionário” não é ser um filme manipulativo, pois existem muitos outros assim que são verdadeiros clássicos do cinema. O que cria a ilusão de que este é “o melhor filme” é o oportunismo de vendê-lo dessa forma numa época em que “ser um milionário” é sonho até de quem já é um e pode acabar deixando de ser. Mais que isso, o longa decepciona por mostrar que, depois de David Fincher e Baz Luhrman, mais um cineasta subversivo – dentro do escopo do cinema de entretenimento – se rendeu aos convencionalismos da linguagem.
Fábula por fábula, Danny Boyle fez uma muito melhor em “Caiu do Céu” (que, por sinal, também envolve um garoto que ganha uma grande quantidade de dinheiro). É um filme totalmente linear, mas é um filme honesto com seus propósitos. Talvez a grande enganação por trás de “Quem Quer Ser um Milionário” seja dizer que ele é o mais experimental entre seus concorrentes nas premiações. Como assim “experimental”? Ir e voltar na linearidade da história já deixou de ser experimento há umas boas três, quatro décadas, e agora nada mais é do que um artifício utilizado gratuitamente por cineastas que temem estar fazendo um filme chato (salvo raras exceções em que se trata de estilo – ex.: Tarantino e David Lynch). A solução encontrada aqui por Boyle e o roteirista Simon Beaufoy foi simplesmente forçar a barra: ligar a resposta certa de cada pergunta do jogo do milhão a um acontecimento do passado de Jamal. Uau. E a resposta final, que surge em um fade logo após a última tomada antes dos créditos, deixa bem claro o quão ortodoxo o filme é.
O mesmo vale dizer para a fotografia de cores saturadas, quentes, paleta que parece ter se tornado padrão para retratar locais subdesenvolvidos. Uma das comparações com “Cidade de Deus” vem daí, juntamente com a montagem agitada (e alguém já deve ter bradado que a “cosmética da fome” voltou a ser moda).
O bom cinema vai além da história bonitinha e do visual bacana: se um filme quer ser relevante a ponto de merecer a distinção de “melhor” entre os outros, ele precisa também ser um espelho para que o público possa se reconhecer nele. “Quem Quer Ser um Milionário” é um espelho, mas daquele tipo que se encontra nos parques de diversões, diante do qual você se posiciona e vê sua imagem distorcida, pura e simplesmente com o propósito de se divertir por ela ser irreal.
direção: Danny Boyle; roteiro: Simon Beaufoy; fotografia: Anthony Dod Mantle; montagem: Chris Dickens; música: A.R. Rahman; produção: Christian Colson; com: Dev Patel, Anil Kapoor, Freida Pinto, Feroz Abbas Khan, Madhur Mittal; estúdio: Celador Films, Film4, Pathé; distribuição: Europa Filmes. 120 min