A motor e insistir em usar os remos,
É o mal que a água faz quando se afoga
E o salva-vidas não está lá porque
Não vemos.”
“Os lábios se tocaram ásperos
Em beijos de tirar o fôlego
Tímidos, transaram trôpegos
E ávidos, gozaram rápido
Ele procurava álibis
Ela flutuava lépida
Ele sucumbia ao pânico
E ela descansava lívida
O medo redigiu-se ínfimo
E ele percebeu a dádiva
Declarou-se dela, o súdito
Desenhou-se a história trágica.”
“Das telhas eu sou o telhado
A pesca do pescador
A letra “A” tem meu nome
Dos sonhos eu sou o amor
Eu sou a dona de casa
Nos pegue pagues do mundo
Eu sou a mão do carrasco
Sou raso, largo, profundo.”
Você pode ter reconhecido os versos acima, mas caso não saiba de onde eles foram extraídos, talvez se surpreenda com o fato de não serem partes de poemas, mas, sim, letras de música. O documentário “Palavra (En)cantada” aborda justamente essa influência da linguagem poética na composição de canções de artistas brasileiros. Porém, nenhum dos versos que abrem esse texto, ou seus autores – na ordem, Renato Russo, Samuel Rosa e Raul Seixas – aparece no filme dirigido por Helena Solberg.
O documentário faz um bom resgate da música brasileira influente dos primeiros 50, 60 anos do século passado. Porém, quando fala do que foi feito do Tropicalismo em diante, o filme dá saltos inexplicáveis, como se ignorasse que artistas da música pop ou rock também são cuidadosos letristas e também recebem forte influência da literatura.
Acaba que essa opção de Solberg soa como uma visão um tanto elitizada do que seria a Música Popular Brasileira – que de “popular”, convenhamos, reteve muito pouco de umas boas três décadas para cá. Implica em um certo preconceito, que contradiz o que o escritor e rapper Ferréz afirma na tela, que a música tem que cumprir o papel de levar a cultura erudita ao “povão” e não ser restrita a quem tem acesso ao estudo.
Ora, o que o filme mostra artistas renomados da MPB fazendo, como Maria Bethânia e o Lirinha do Cordel do Fogo Encantado recitando versos poéticos entre uma música e outra em seus shows, Renato Russo também fazia. As intervenções que Tom Zé faz no palco e as inventividades de Caetano Velozo em suas letras não ficam atrás do que Raul Seixas também concebeu em sua obra. A métrica e o lirismo das letras de Chico Buarque, Vinícius de Moraes e Lenine também podem ser encontradas em músicas do Skank. Então, por que nenhum desses artistas é sequer mencionado no filme?
Não é que “Palavra (En)cantada” esnobe artistas contemporâneos. Arnaldo Antunes, que participou do Titãs, está lá, mas depois que saiu do grupo o músico foi apropriado pela MPB atual. Chico Science é citado, mas aparece sendo interpretado por Jorge Mautner. Mesmo os rappers, que o filme busca valorizar, acabam servindo como meros exemplos da tese (muito válida, por sinal) de que o cordel evoluiu para o rap. Adriana Calcanhoto, Lenine, Zélia Duncan estão lá. Mas são escolhas que atendem ao público da MPB e a quem o filme acaba sendo direcionado. De repente, a investigação sobre a influência da poesia na música vira ideia de fundo e o documentário se reduz a um elogio aos artistas entrevistados e suas influências.
Não quero aqui cair na comparação de qualidade entre um artista e outro. Mais que fazer juízo de valor, o que tento apontar é que há uma parcialidade prejudicial ao filme, e que talvez tenha surgido por que os realizadores simplesmente seguiram seus gostos musicais.
É a insistência em dissociar o pop da MPB (um demérito que não é exclusivo do filme) que se torna a grande vilã de “Palavra (En)cantada” – que é um filme simpático e tem vários méritos, claro. Mesmo que adote o formato de cabeças falantes, estas são cabeças pensantes também e os depoimentos são ricos. Há uma passagem das mais curiosas, em que Chico Buarque contesta o título de poeta que Paulo César Pinheiro acabara de lhe atribuir. E é comovente ver a visita de Zeca Baleiro à poetisa Hilda Hilst, que declara que pediu ao cantor e compositor maranhense para musicar seus poemas para ela poder ganhar algum dinheiro, uma vez que considera que os poetas não são valorizados no Brasil.
Essa passagem de Hilda Hilst promove o que talvez seja a reflexão mais pertinente que o filme propõe: a poesia morreu? A resposta é um sonoro e nasal (ao gosto de Lenine) “não”. O que a poesia fez foi encontrar na música seu abrigo, seu refúgio para sobreviver. Daí se desdobra a questão que Helena Solberg coloca por último aos seus entrevistados: a canção morreu? Claro que não. Arte alguma há de morrer, mas, sim, se adaptar à evolução cultural e tecnológica da humanidade.
Deixo este texto com mais uma citação de Raulzito, de letra de uma música de título sugestivo: “MPB – Sucesso é Tua Prova”. Ele não chegou a gravá-la. Pode ser considerada, então, poesia?
“Só um grupo de frustados lá no canto
Pra enganar classe A não precisa tanto
Um grupinho de frustados lá da cova
Saudosistas radicais da bossa nova
Isso é só conversa pra estudante
Que são ovelhas, que não vão atrás
Seguindo um trio que ontem já passou
Sem deixar uma chance pra o rumo que o mundo tomou
Que só levam a música real pra trás
Mas é que o sucesso…
É a tua prova.”
direção: Helena Solberg; roteiro: Diana Vasconcellos, Helena Solberg, Marcio Debellian; fotografia: Pedro Farkas, Luis Abramo; montagem: Diana Vasconcellos; produção: David Meyer; estúdio: Radiante Filmes; distribuição: Filmes do Estação. 83 min