Star Trek

A franquia “Jornada nas Estrelas” sempre foi marcada pelo modo parcimonioso de filmagem e pela abordagem reflexiva dos temas tratados, em contraste a “Star Wars”, “Flash Gordon”, “Firefly” e outros do mesmo gênero. Com esta nova versão que chega aos cinemas mais de 40 anos após a concepção da série original, acontece uma revolução: agora, utilizando o título original em inglês por imposição do merchandising globalizado, “Star Trek” deixa de ser uma ficção-científica pura e se assume como uma aventura espacial.

O grande responsável pela mudança radical, que salta aos olhos já nos primeiros minutos, é o diretor J.J. Abrams. Ele traz à franquia uma visão mais contemporânea de entretenimento, fortemente influenciada pelo modelo de filme de ação dos anos 90 – modelo este que também contaminou o campo em que Abrams é mais experiente, a TV, onde reside sua criação mais famosa, o seriado “Lost”. O que Abrams faz em “Star Trek” é aplicar no espaço sideral o que ele fez em “Missão: Impossível 3”, filme que marcou a sua estréia como cineasta.



No lugar dos embates dialéticos que marcaram a franquia desde os anos 60, entram diálogos incisivos e cenas que valorizam o visual bem mais vistoso formado com o auxílio da computação gráfica. Esta tecnologia é usada não de uma forma contemplativa, como no primeiro longa de 1979 dirigido por Robert Wise, mas de uma maneira exuberante, não só no que diz respeito à qualidade da imagem, mas na exploração de cenários grandiosos, alienígenas e monstros animados por CGI, efeitos de tiros e explosões mais impactantes – tudo o que a técnica permite fazer hoje e cujo desenvolvimento acompanhou a evolução da franquia.

Somado a isso, estão as cenas de ação, com tomadas curtas em substituição aos planos mais duradouros dos primeiros filmes, ângulos diversificados ao invés do predominante eixo ocular usado até então, e o movimento constante de câmera que se opõe às articulações básicas e contidas que vinham dando unidade aos longas-metragens. Abrams “atualiza” o modo de filmar “Star Trek”, mas o resultado não é necessariamente bom, especialmente se comparado ao estilo old school que a franquia mantinha. Nas cenas de luta, por exemplo, o diretor tem o hábito de filmar muito de perto e tremer a câmera. Resultado: mal dá para ver os atores desferindo golpes. E na tentativa de tornar o filme mais agitado, são inseridas cenas de ação demais, algumas que não acrescentam nada à narrativa (como uma perseguição de carros, uma fuga de monstros na neve, ou ainda uma gag que envolve dutos de água).

O ritmo e o visual renovados de “Star Trek” foram empregados para se adequar a um público mais impaciente e também para dar um gás à franquia, que nos últimos quatro filmes caiu consideravelmente de rendimento – tanto criativo quanto financeiro. Mas se por um lado a nova versão causa um estranhamento nos fãs de longa data, por outro devolve a essa platéia o prazer de ver novamente os membros originais da tripulação da Enterprise. Agora interpretados por jovens e competentes atores, o capitão Kirk, o senhor Spock, o doutor McCoy e outros, recuperam aquilo que “Jornada nas Estrelas” tem de mais precioso: o carisma, que é pautado pelo humor elegante e características particulares de cada personagem, que são imediatamente reconhecidas.

James T. Kirk surge com a mesma aura arrogante-simpática numa interpretação cuidadosa de Chris Pine – que aparentemente estudou os tiques gestuais e expressivos que William Shatner adotava na composição do personagem. Spock se vale da aparência de Zachary Quinto, que não o afasta da fisionomia sisuda de Leonard Nimoy. Ele só está um pouco vulcano demais, digamos, sem mostrar o lado humano que Nimoy deixava transparecer. O contraste é claro principalmente por ambos estarem no elenco, mas talvez essa diferença seja representativa da evolução do personagem.

Enquanto isso, Simon Pegg faz o Scott que James Doohan faria em seu lugar, John Cho mantém a seriedade que George Takei emprestava a Hikaru Sulu e Zoë Saldana dá a Uhura um sex appeal que não desrespeita a versão de Nichelle Nichols. Os únicos que não convencem tanto, unicamente por razões de diferenças óbvias de aparência em relação aos atores originais, são os novos Chekov (agora na pele de Anton Yelchin, que é loiro e de olhos azuis) e o Dr. Leonard “Bones” McCoy (vivido por Karl Urban, moreno de olhos escuros). Você vê que os personagens imortalizados por Walter Koenig e DeForest Kelley estão ali, com seus trejeitos e idiossincrasias, mas quem já está acostumado com os intérpretes clássicos pode acabar se distraindo até assimilar as novas feições propostas.

O mérito coletivo deste “Star Trek” inclui também os roteiristas Roberto Orci e Alex Kurtzman, que criaram o melhor enredo de um filme da franquia em quase 20 anos, desde “Jornada nas Estrelas 6: A Terra Desconhecida”. E o maior feito da dupla é saber manter a cronologia da saga, ainda que o filme pretensamente vista uma roupagem de pré-continuação. Na verdade, esta é a primeira vez que o mecanismo da viagem no tempo é usado com sabedoria em um longa da série, pois acaba por possibilitar que novas aventuras sejam feitas futuramente sem comprometer a continuidade já construída. Orci e Kurtzman foram corajosos por assumirem o risco, sempre temido em filmes de viagem no tempo, de alterar o passado e mudar a história. Dessa forma, ganharam a liberdade de introduzir elementos novos na mitologia da franquia, que podem surpreender, como a relação tumultuada entre Kirk, Spock e Uhura. Já outros, como um certo ajudante que Scott arruma, são bobagens esquecíveis. O que talvez incomode são detalhes como a nova decoração da ponte de comando da Enterprise, que se mostra muito clara. Além disso, o alerta vermelho inexplicavelmente não é vermelho.

Faz falta ainda o uso do tema musical composto por Jerry Goldsmith, utilizado no filme de 79, além de “Jornada nas Estrelas 5: A Última Fronteira” e na Nova Geração. A nova trilha de Michael Giacchino é vigorosa e repleta de referências às trilhas anteriores da saga, mas a imponência do tema de Goldsmith é algo difícil de ser equiparado. Poderia ter entrado pelo menos nos créditos finais.

“Star Trek” pode não possuir o mesmo charme da série original ou dos seis primeiros filmes, mas cumpre muito bem o seu papel de reiniciar a franquia para uma nova geração de espectadores. E faz isso sem desrespeitar os fãs de longa data. Que no próximo, invista-se ainda mais na relação entre os personagens, para que também seja trazida de volta a química da tripulação, que aqui apenas começou a se desenhar. E incluam alguns Klingons, por favor.

nota: 7/10 — veja no cinema e compre o DVD

Star Trek (2009, EUA/Alemanha)
direção: J.J. Abrams; roteiro: Roberto Orci, Alex Kurtzman; fotografia: Daniel Mindel; montagem: Maryann Brandon, Mary Jo Markey; música: Michael Giacchino; produção: J.J. Abrams, Damon Lindelof; com: Chris Pine, Zachary Quinto, Leonard Nimoy, Eric Bana, Bruce Greenwood, Karl Urban, Zoe Saldana, Simon Pegg, John Cho, Anton Yelchin, Ben Cross, Winona Ryder, Chris Hemsworth, Jennifer Morrison, Rachel Nichols, Clifton Collins Jr., Jimmy Bennett, Jacob Kogan; estúdio: Paramount Pictures, Bad Robot, Spyglass Entertainment; distribuição: Paramount Pictures. 126 min