Enquanto o primeiro é trabalhado numa esfera mais óbvia, com direitos a cenas de discussão e amor, o segundo, ainda que esteja declarado, pode ser observado num patamar que abraça toda a narrativa, mesmo que os personagens de Wilkinson e Giamatti tenham um tempo menor de tela do que Owen e Roberts. A genial sequência dos créditos iniciais sintetiza o duelo que será travado, mas é a direção de Gilroy que se encarrega de estabelecer uma identificação que denota a hierarquia das relações.
Veja o próprio espaço físico que os atores ocupam: Ray e Claire aparecem quase sempre nas ruas ou escondidos em apartamentos fechados ou recintos de subsolo. Já os rivais Tully e Garsik são vistos geralmente em salas amplas ou em andares muito altos de seus prédios. É curioso observar ainda como Gilroy coloca Giamatti na sombra e Wilkinson na luz, o que mais tarde se revela muito apropriado para a personalidade de cada personagem.
A batalha corporativa entre os homens engravatados (tipos que parecem ser favoritos de Gilroy, já que desde “O Advogado de Diabo” ele os coloca em seus roteiros) funciona em paralelo com a dinâmica afetiva do casal principal. Enquanto a trama se desenvolve numa estrutura semi-complexa, que recorre a um interessante jogo de duplos (como o título propõe) e frequentes flashbacks e flashforwards – e o mais importante: sem tornar a narrativa confusa – Gilroy encontra espaço para ironizar de leve os pequenos conflitos que surgem em todo relacionamento: a desconfiança, o ciúme, o egoísmo.
Graças aos diálogos afiados e cadenciados, que carregam um pouco da tônica screwball (de filmes como o clássico “Jejum de Amor”, de Howard Hawks), é uma delícia acompanhar Roberts e Owen. O que remete a “Closer – Perto Demais”, onde os mesmos atores têm discussões conjugais (bem mais calorosas e explícitas, é verdade, mas acirradas no mesmo nível), mas também, e talvez principalmente, a “Irresistível Paixão”, que conta com uma dinâmica parecida entre os personagens de George Clooney e Jennifer Lopez.
Aliás, “Duplicidade” poderia perfeitamente ter sido escrito por ou baseado em um livro de Elmore Leonard, autor de “Irresistível Paixão” e outras tramas policiais intricadas, cheias de idas e voltas no tempo narrativo e permeadas por um humor esperto, de tiradas, daquele que faz você rir com consciência, e não apenas no ímpeto de uma reação instantânea. Curiosamente, Gilroy parece ter consciência dessa semelhança (ou influência) e também utiliza no estilo do filme algo que Steven Soderbergh e Quentin Tarantino (com “Jackie Brown”) colocaram em suas adaptações de Leonard, com split-screens e uma elegância estética que só faz bem aos olhos. Sem falar na trilha sonora, na qual James Newton Howard parece referenciar a todo o instante o colega David Holmes, que trabalhou em “Irresistível Paixão” e na trilogia “Onze Homens e um Segredo” (que também se faz lembrar um pouco aqui).
Outro ponto no qual essas produções são pares é o elenco idiossincrásico de personagens, que tem um suporte perfeito dos atores coadjuvantes, ainda que eles não sejam grandes nomes. Cenas como a conversa no carro entre Denis O’Hare e Rick Worthy, que fazem integrantes da equipe de espiões da farmacêutica Equikrom, ou o interrogatório de Carrie Preston, que interpreta uma funcionária ludibriada da companhia rival Burkett & Randle, funcionam tão bem por que eles são ótimos intérpretes e tem seus talentos valorizados, ainda que Owen e Roberts estejam em cena também.
“Duplicidade” é o segundo longa-metragem dirigido por Gilroy e o décimo primeiro escrito por ele. Não é tão bem acabado quanto “Conduta de Risco”, mas é um elegante filme de espionagem com veia cômica, que marca mais um ponto positivo no currículo do cineasta. Entretenimento despretensioso e inteligente.
direção: Tony Gilroy; roteiro: Tony Gilroy; fotografia: Robert Elswit; montagem: John Gilroy; produção: Laura Bickford, Jennifer Fox, Kerry Orent; com: Clive Owen, Julia Roberts, Tom Wilkinson, Paul Giamatti, David Shumbris, Rick Worthy, Oleg Shtefanko, Denis O’Hare, Kathleen Chalfant, Khan Baykal, Thomas McCarthy, Wayne Duvall, Carrie Preston; estúdio: Laura Bickford Productions, Relativity Media, Universal Pictures; distribuição: Universal Pictures. 125 min