O bando, o matador e a Matrix

Três clássicos do cinema de ação completam decênios de existência em 2009. Seus diretores ajudaram a redefinir o gênero ao longo de quatro décadas.

No último mês de julho, “The Killer – O Matador” (1989), filme fundamental para o cinema de ação que vemos ser feito atualmente, completou 20 anos. Hoje, quem assistir ao longa pela primeira vez talvez não se impressione tanto com o trabalho magnífico de John Woo, já que, possivelmente, o imaginário do espectador está contaminado por cenas de tiroteio semelhantes, vistas em N outros filmes feitos nas duas décadas seguintes.



Em “The Killer”, e dois anos depois em “Fervura Máxima” (talvez o seu melhor filme), Woo atinge a plenitude de um cinema que ele começa a ensaiar em “Alvo Duplo”, de 1986, longa que levantou sua carreira graças à ajuda de outro mestre da ação, Tsui Hark. Naquele filme, Woo já experimentava cenas elaboradas de tiros em ambientes urbanos, mas é em “Alvo Duplo 2”, de 1987, que sua assinatura passa a ser realmente percebida: as sequências orquestradas e o uso da câmera lenta.

Woo, que começou no cinema trabalhando no lendário estúdio dos irmãos Shaw, aplicou no gênero policial aquilo que aprendeu nos filmes de luta. Trocou as espadas por armas de fogo e reinventou a filmagem de um tiroteio. Influenciado por Jean-Pierre Melville – que em “O Samurai” (1967) já remodelava a estética do cinema policial urbano pós-noir, utilizando pouquíssimos diálogos e com uma impressiva afabilidade nos movimentos e enquadramentos – Woo também incorpora em sua direção o estilo que Sam Peckinpah exerce em faroestes e também nos filmes policiais que realizou.

Pois 2009 também marca o aniversário de 40 anos de “Meu Ódio Será Sua Herança”, que é Peckinpah em um dos pontos altos da carreira, tornando o western não só muito mais brutal e físico, se comparado a John Ford ou Howard Hawks, mas também imbuído de um estilismo imponente, como fazia Sergio Leone. E se Peckinpah adota a câmera lenta geralmente no desfecho de uma ação violenta – ou seja, no momento seguinte ao que um personagem é alvejado – Woo usa o slow motion quase que na integridade da ação, desde o sacar da arma até a queda do alvo.

Woo também traz de volta aos filmes policiais a aspereza e a violência rude que marcou o gênero nos anos 70, não apenas com Peckinpah, mas em filmes como “Dirty Harry – Perseguidor Implacável”, de Don Siegel, “Rota Suicida”, de Clint Eastwood, “Operação França”, de William Friedkin, “Assalto à 13ª D.P.”, de John Carpenter, “Desejo de Matar”, de Michael Winner, e “Dillinger – Inimigo Público nº 1”, de John Milius. E junto com John McTiernan e “Duro de Matar” (lançado em 1988, um ano antes de “The Killer”), Woo utiliza como protagonistas homens comuns em situações extraordinárias e deixa para trás o estereótipo dos heróis musculosos e machões que Sylvester Stallone, Arnold Schwarzenegger e Chuck Norris tornaram famosos nos anos 80. O cinema de ação ganha uma nova identidade na virada da década e estabelece um novo padrão – que outro grande cineasta de Hong Kong, Johnnie To, também ajuda a moldar. (To, aliás, não se rendeu a Hollywood como Woo, e provavelmente por isso tenha mantido um ritmo criativo mais estável do que seu conterrâneo, sendo hoje mais reconhecido pela crítica.)

Até que chega 1999 e “Matrix” redefine novamente o gênero. Influência sobre influência, aliando a mesma ideia da coreografia e da câmera lenta com o uso vanguardista da computação gráfica, os irmãos Wachowski sementam o estilo que serviria de modelo dali em diante, além de colocarem em cena a figura do cyber-herói, seja ele hacker ou nerd. E ainda hoje, completando dez anos de idade, o efeito “Matrix” é sentido – basta observar como cenas concebidas por cineastas como Zack Snyder (“300”, “Watchmen”), Michael Bay (“Bad Boys”, “Transformers”), Guy Ritchie (“Snatch – Porcos e Diamantes”, “RocknRolla”) e Timur Bekmambetov (“Guardiões da Noite”, “O Procurado”) parecem ter como fonte, e não como meio, aquele slow motion extremo que vai além da desaceleração: praticamente paralisa o movimento.

Se em Peckinpah a câmera lenta tem efeito dramático e em Woo ela também serve para prolongar o movimento (e, de certo modo, valorizar o trabalho feito em set), hoje, com as facilidades do CGI, o recurso parece não ter por que existir senão apenas ser um efeito que de especial não tem mais nada. Ainda que os irmãos Wachowski façam uso inteligente e esteticamente bem resolvido, muitos de seus seguidores parecem se contentar com o poder manipulativo que descobrem serem capazes de exercer com um mouse na mão, ao ponto de o efeito se tornar gratuito, com a câmera lenta aparecendo na totalidade da cena, e não apenas em momentos sublinhados.

Mas, claro, daqui a uma, duas décadas, talvez até mesmo mais cedo, poderemos estar diante de um refinamento da tecnologia atual que permita que novos cineastas dêem um impulso na evolução da linguagem, tal qual fizeram Peckinpah, Woo e os Wachowski. Tem que ser esse o triunfo da arte sobre as capacidades da máquina que hoje parecem robotizar cineastas que pouco têm a dizer – ou, no caso, mostrar.

Três filmes, quatro décadas, mil balas

MEU ÓDIO SERÁ SUA HERANÇA (1969), de Sam Peckinpah

THE KILLER – O MATADOR (1989), de John Woo

MATRIX (1999), de Andy e Larry Wachowski

As influências e os moldes do cinema de ação nas últimas décadas

ANOS 60 Os faroestes ainda estão em alta e ganham novos contornos com Sergio Leone (“Três Homens em Conflito”, 1966) e Sam Peckinpah (“Meu Ódio Será Sua Herança”, 1969). Mas são as missões de espionagem de James Bond que predominam. Outros filmes de ação se misturam com filmes de guerra nas mãos de cineastas como John Frankenheimer, com “O Trem” (1964). No entanto, se destacam três policiais urbanos: “À Queima Roupa” (1967), de John Boorman, e “Bullit” (1968), de Peter Yates. Outro marco no estilo e no uso da violência é “Bonnie e Clyde – Uma Rajada de Balas” (1967), de Arthur Penn.

ANOS 70 O western ainda tem fôlego e vê a aurora dos blockbusters com os filmes de desastre, aventura e ficção-científica. E começam a surgir mais policiais urbanos, com perseguição de carros (“Operação França”, de William Friedkin, seguindo a trilha de “Bullit”) e duelos de rua envolvendo detetives vs. bandidos (“Dirty Harry”, “Desejo de Matar”, “Shaft”, “Os Implacáveis”, “O Sequestro do Metrô”, “Assalto à 13ª D.P.”, “The Warriors – Os Selvagens”). Os filmes exploitation também embarcam na onda. A década é marcada ainda pelos filmes de artes marciais, tendo Bruce Lee como peça fundamental para sua disseminação e gerando seguidores que até hoje mantém o subgênero em atividade.

ANOS 80 Predomina o “cinema pipoca” e os “filmes de macho”, com brutamontes empunhando armas pesadas e atirando para todos os lados (Stallone, Chuck Norris, Schwarzenegger). O herói de ação vai para a selva (“Rambo”), para o deserto (“Os Caçadores da Arca Perdida”), para a América Latina (“Comando Para Matar”). Se ele fica na cidade, é em outro lugar no tempo (“O Exterminador do Futuro”, “Robocop”, “Fuga de Nova York”). Parece não haver como escapar da abstração de uma forma ou de outra. O espaço urbano do presente sobra para os policiais engraçados, encarnados por Eddie Murphy em “48 Horas” e “Um Tira da Pesada” e por Mel Gibson e Danny Glover em “Máquina Mortífera”, além, claro, de Jackie Chan com “Police Story”. É o surgimento de um novo subgênero, a comédia de ação. Os filmes “sérios” se tornam subprodutos da indústria, como a série “Desejo de Matar”. Até que surgem “Duro de Matar” e “The Killer” no fim da década e renovam o gênero, fazendo dos protagonistas policiais comuns, com problemas e preocupações comuns, vivendo em lugares comuns, mas passando por situações extraordinárias.

ANOS 90 Os filmes de ação passam a existir em quantidade muito maior (o que em contrapartida implica em queda de qualidade) e os cenários voltam a ser urbanos: as continuações de “Duro de Matar”, “Caçadores de Emoção”, “O Fugitivo”, “O Profissional”, “Velocidade Máxima”, “True Lies”, “Fogo Contra Fogo”, “Con Air”, “Força Aérea Um”, “Bad Boys”, “Cães de Aluguel”, além dos filmes policiais estrelados por Jean-Claude Van Damme, Wesley Snipes e Steven Seagal. Há uma divisão aí: aqueles descerebrados, preocupados apenas com a ação, e aqueles que desenvolvem seus personagens, como é o caso dos filmes de Michael Mann, Luc Besson, James Cameron e, claro, John Woo – que é levado para Hollywood e realiza “O Alvo” (com Van Damme), “A Última Ameaça”, “Face/Off”, “Missão: Impossível 2”, “Códigos de Guerra” e “O Pagamento” (os três últimos já nos anos 2000). O gênero policial também passa a receber mais thrillers de serial killer a partir de “Se7en – Os Sete Pecados Capitais”, de David Fincher. Já as ficções-científicas de ação se tornam minoria, voltando a aparecer com mais frequência somente no fim da década, graças aos avanços da computação gráfica. O que leva ao retorno de “Star Wars”, dos filmes-desastre (“Twister”, “Volcano”, “Impacto Profundo”, “Armageddon”) e o surgimento de “Matrix”, que marca outra virada no gênero, unindo ficção-científica e cenário urbano em um estilo fortemente influenciado pelo cinema asiático – de onde Woo veio.

ANOS 2000 A ficção-científica e a fantasia voltam à moda, puxadas pela nova trilogia “Star Wars”, de George Lucas, reanimando franquias como “O Exterminador do Futuro” e originando outras, como “Harry Potter” e “O Senhor dos Anéis”, ambas saídas da literatura. Embarca junto o gênero de filmes de super-heróis, que passa predominar com o lançamento de “X-Men” (2000), de Bryan Singer, e o sucesso de bilheteria de “Homem-Aranha” (2002), de Sam Raimi, levando a vários outros filmes baseados em personagens de quadrinhos. “Matrix” ganha duas continuações e inúmeros seguidores no estilo de filmagem, como “As Panteras” (2000), de McG, “Snatch: Porcos e Diamantes” (2000), de Guy Ritchie e “Guardiões da Noite” (2005), de Timur Bekmambetov. A base passa a ser a computação gráfica, que possibilita a redução da força física empregada nas produções, ao mesmo tempo em que amplia as possibilidades imaginativas, já que o espaço imagético se torna praticamente ilimitado – porém, ainda mais fácil de induzir ao erro. Contudo, volta a surgir um cinema de ação mais pé no chão, mais verdadeiro, tendo como principais representantes a trilogia Bourne (com direção de Doug Liman e Paul Greengrass) e “007 – Cassino Royale”, de Martin Campbell.