4000 Euros / Anticristo / Bem-vindo / Com Todo o Coração / Duas Senhoras / Elevador / Kinatay / Kronos / Li Tong / A Onda / Quanto Dura o Amor?
“Kinatay”, de Brillante Mendoza
O ano em que chegamos mais perto de Cannes
A exibição de “Kinatay” na sessão de encerramento do INDIE 2009, na quinta-feira, dia 10 de setembro, foi especial por vários motivos. O filme de Brillante Mendoza (o cineasta filipino teve a obra completa apresentada em retrospectiva, ponto alto da mostra) fala por si mesmo e proporciona uma experiência intensa ao espectador, que merece um texto próprio. Por hora, vale destacar a forma como Mendoza nos leva por um caminho escuro (grande segmento do filme é quase todo preto, filmado em luz natural, no escuro, com câmera na mão) até pisarmos no terreno igualmente indistinto do questionamento ético que confronta um jovem policial, testemunha de um ato de barbárie.
“Kinatay” é, sem dúvida, um dos melhores títulos exibidos nesta edição do festival. A sessão, aliás, estava comprometida e dependia da chegada dos rolos a Belo Horizonte, após uma longa viagem de Hong Kong, onde também fora exibido em festival. Chegou e a projeção correu tranquila, com legendas em inglês na película e em português na tradução eletrônica. Mesma cópia será exibida em São Paulo na versão compacta do INDIE, mas a exibição em BH teve um gostinho especial para os cinéfilos mineiros que raramente têm essa chance de degustar primeiro que todo mundo no país um filme como este, que chega premiado como Melhor Direção em Cannes 2009. Importante passo para o festival, que a cada ano tem ficado mais forte.
Aliás, outro filme que deixou este INDIE mais próximo de Cannes é “Anticristo”, escândalo de Lars von Trier que já estava em exibição comercial em salas do Rio de Janeiro e São Paulo. Tudo bem, não foi pré-estréia no INDIE, mas o que valeu foi o clima de festival e ver a sala apinhada de gente em plena noite de feriado de 7 de setembro.
A experiência contou mais do que o filme no fim, já que von Trier parece mais preocupado em se exibir, como sempre, do que em narrar uma história. De toda forma, no principal, que é construir imagens próprias de uma tela de cinema, ele consegue mais uma vez se sair bem. É impressionante como cada um de seus filmes possui um visual distinto, mas todos trazem sua inconfundível assinatura. Você sabe sempre que está assistindo a um filme de Lars von Trier. É possível que “Anticristo” (que também terá texto próprio em breve aqui no site) cresça numa revisão, feita com mais tranquilidade e estudo, já que o filme é permeado por simbolismos que no fundo podem ter algo de relevante. Por hora, no entanto, é um exercício plástico que enche os olhos, causa um mínimo de tensão, acerta no choque, mas é pouco construtivo no que tem a dizer.
“Duas Senhoras”, de Philippe Faucon
Alguns destaques da Mostra Mundial
Junto com “Kinatay”, o filme que mais gostei deste INDIE foi o francês “Duas Senhoras”, do diretor marroquino Philippe Faucon. Longa que já está na estrada há mais tempo, tendo sido exibido pela primeira vez no Festival de Toronto de 2007. É um filme humanista, que trata do conflito na Faixa de Gaza com subtexto político presente o tempo todo, mas apenas como pano de fundo, vindo à tona somente quando a relação das duas senhoras do título pede. E as duas, Ariane Jacquot e Zohra Mouffok, são ótimas atrizes – especialmente Zohra, que faz o filme crescer um tanto quando assume o lugar da filha (Sabrina Ben Abdallah) como protagonista.
“Duas Senhoras” trata do encontro inusitado entre essas mulheres idosas, quando Esther (Ariane), a mais rica e judia, precisa de cuidados especiais por estar debilitada e não poder andar. A enfermeira, humilde e muçulmana, sugere que sua mãe, Halima (Zohra), passe a ajudá-la, servindo como companheira para Esther. A frase chave do filme sai da boca do imam que Halima visita: “Respeitamos quem nos respeita”, o que independe de credo, classe social, cultura ou origem. E a relação das duas senhoras se converte numa amizade bonita porque elas não permitem que fatores externos as influenciem.
Este é o primeiro filme de Faucon a que assisto e gostei de seu estilo de direção simples e muito preciso nas escolhas que faz do que deixar dentro e fora do quadro. Ele centraliza a atenção no que é mais importante: um olhar ou uma reação a uma conversa. São constantes as cenas em que os diálogos acontecem num campo só. Curioso, aliás, como todos os homens, exceto o marido muçulmano, quase não têm os rostos mostrados, ficando fora de quadro. E eles, como os demais atores, continuam atuando sem estarem enquadrados. Faucon dirige as cenas mesmo extra-câmera, em todo o set, e ali escolhe onde fazer o recorte. “Duas Senhoras” já tem distribuição garantida e deve entrar em cartaz em breve no circuito.
Outro feliz achado na programação do INDIE 2009 foi o canadense falado em francês “Com Todo o Coração”, de Stéphane Géhami. O filme traz uma certa semelhança com “Amantes”, de James Gray, já que seu protagonista também está dividido entre duas mulheres: a ex-namorada, por quem ainda nutre uma paixão impetuosa, e a nova, que tem emprego e nível social mais confortáveis – para ele. Como Joaquin Phoenix, o personagem de Pierre Rivard também é encrenca: rouba carros para ter sua fonte de renda e não consegue tomar jeito. Muitas vezes, parece um meninão mais imaturo que o adolescente Jimi, seu pupilo e parceiro em delito. Talvez Géhami não precisasse filmar tanto sexo, mas de forma geral sua câmera é bem disposta, consciente, e a narrativa não vacila nas alternâncias entre drama e humor da trajetória do personagem principal. Um bom filme que merece ser visto fora do festival. Ainda está sem distribuição, infelizmente.
Também gostei bastante do chinês “Li Tong”, de Nian Liu – filme doce sobre uma menininha que fica perdida no Centro de Pequim após seu passe de ônibus sumir. A garotinha é uma graça e segura bem o filme inteiro. Ela se sai melhor quando interage com o garoto de rua que encontra no caminho e que a ajuda a voltar para casa. O menino poderia ter entrado mais cedo na história, já que nos momentos em que a garota está sozinha o filme pede por mais ritmo. E não é pela forma como é dirigido, já que Liu demonstra segurança e serenidade, mas simplesmente porque algumas cenas não têm muito porquê de estarem ali (o encontro com o homem vestido de urso panda, por exemplo). É um filme sobre crianças feito para adultos. Também não tem distribuição garantida no Brasil.
Destaco ainda o espanhol “4000 Euros”, que é como se uma trama policial pós-Tarantino fosse dirigida com a crueza que se observa no cinema romeno atual, digamos. Mas antes de você se empolgar, tenho que dizer que o filme de Richard Jordan peca no refinamento da montagem, que conta com fades sem sentido (um deles é tão grosseiro que parece até que o cineasta se esqueceu de revisar o corte final). A comparação que faço com o cinema romeno (e outros contemporâneos) se deve mais àquela ideia de deixar a câmera estática enquadrada num rosto ou num lugar por uma duração acima da média de uma tomada convencional. Há aquela sensação de “naquele tempo, naquele lugar”, que torna o filme mais verdadeiro. Além disso, não há trilha sonora. A trama policial gira em torno de dois irmãos: ela tem que arrumar 4.000 euros para pagar uma dívida do irmão com uma gangue e salvar a vida dele. Os atores, Marta Larralde e Alberto López, são bons. O problema é que o filme termina meio sem jeito. O desfecho deveria dar um baque no público, mas nos deixa perguntando: “É só isso?” Sem estragar o filme para quem não viu, digo apenas que um gângster de verdade teria pelo menos arrancado um dedo do rapaz. “4000 Euros” é outro que está sem distribuição no Brasil. Se aparecer em algum festival na sua cidade, não perca.
“Kronos”, de Olav F. Wehling
Os micos do ano
Se todo INDIE tem filmes muito bons, também tem suas ovelhas negras. Se no ano passado foi o constrangedor “Amantes” (ainda bem que não foi lançado comercialmente, senão poderia causar confusão com o belo filme de James Gray), este ano a Mostra Mundial ofereceu “Kronos”. Sob o pretexto de remontar o mito grego do filho de Urano, o diretor alemão Olav F. Wehling não se vale da boa fotografia e da paisagem desértica que nos minutos iniciais dão esperança de um filme de direção impactante. Mas tal impacto de esvai quando o cineasta (estreante como quase todos da Mostra Mundial) começa a forçar na composição e insiste na trilha sonora maçante e repetitiva. Os problemas estéticos são os menores, na verdade. Wehling quer ser metafórico, mas acaba sem dizer coisa alguma. Seu filme (ou projeto de conclusão de curso, como é apresentado no site do festival) logo se converte numa tentativa pífia de falar sobre a condição humana em situação limite. Pretensioso demais.
(Fato curioso: durante a sessão de “Kronos” no sábado à tarde, um senhor, que aparentava estar embriagado, não se conteve e começou a gritar contra a tela nas cenas de incesto. Saiu da sala no meio de uma delas, esbravejando: “Imundo! Imundo!” Pois se nem ele aguentou…)
Um filme que me decepcionou bastante foi “Quanto Dura o Amor?”, segundo longa de Roberto Moreira, de quem eu esperava bem mais após a estreia com o forte “Contra Todos”. Pois bem. O cineasta cai na arapuca dos filmes de tramas paralelas que competem entre si. Aí temos duas histórias para lá de lugar-comum que o filme tenta empurrar como quebra de tabu por falar de amor através da perspectiva homossexual. O terceiro enredo é o único que gera algum interesse maior: um escritor, careca e barrigudo, que idealiza uma relação perfeita e tenta concretizá-la se refugiando nos braços de uma prostituta. É o único personagem que eu queria ver mais, já que os outros vivem dramas de fácil acepção por qualquer folhetim de TV. Moreira não deveria ter trocado a câmera trêmula e urgente de “Contra Todos” pela steady-cam, que acaba por romantizar o que já é romantizado em excesso. E a trilha sonora tem Radiohead, o que sempre é bom, mas os covers picaretas de Danni Carlos dão nos nervos. Pelos nomes envolvidos em “Quanto Dura o Amor?” (Anna Muylaert também assina o roteiro e Sílvia Lourenço é uma das atrizes principais), o resultado não só poderia, como deveria ter sido bem melhor.
“Elevador”, de George Dorobantu
Na média
Nestes últimos parágrafos, outros três filmes que ficaram na média entre o que vi no INDIE 2009. O francês “Bem-vindo”, de Philippe Lioret, tem aquela história bonitinha, mas ordinária do garoto e da garota que tem um namoro proibido. Ele vai tentar atravessar o Canal da Mancha a nado para reencontrá-la na Grã-Bretanha. O filme tem seus bons momentos na relação do menino com o professor de natação (Vincent Lindon) que o ajuda a treinar – o professor vendo no jovem um esforço para recuperar a mulher amada que ele mesmo naõ foi capaz de exercer para salvar o casamento. A direção de Lioret é muito convencional, o que acaba por pasteurizar demais a abordagem da história de amor.
“Bem-vindo” já está em cartaz nos cinemas de outras cidades, assim como o alemão “A Onda”, de Dennis Gansel. Este, no início, chega a lembrar o ótimo “Edukators” por tratar de uma discussão política entre adolescentes. Esse começo de conversa é bastante interessante na forma como o professor (Jürgen Vogel) apresenta aos alunos o modelo de dominação de massa. Mas depois que o filme passa a se concentrar apenas na falta de controle que o experimento ganha fora da sala de aula, o interesse pelo tema político fica em segundo plano. Você fica apenas curioso em ver como aquilo vai acabar, o que também não é nenhum mistério, graças aos estereótipos de alunos que Gansel utiliza.
Montagem moderninha, trilha sonora agitada, personagens fáceis, rostos bonitos, tudo na medida em “A Onda” para o gosto do público juvenil médio. O mesmo é encontrado no bem mais modesto “Elevador” – que se passa quase todo dentro de um elevador, ora essa. A química entre os dois únicos atores do filme, Cristi Petrescu e Iulia Verdes, é boa e rende empatia e alguns bons diálogos. A ideia de filmar dentro de um recinto fechado não é inédita e acaba não sendo bem executada, já que o diretor George Dorobantu recorre a efeitos de câmera que só atrapalham e o distanciam da “nova escola” do cinema romeno (que já rendeu o premiado “4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias”, de Cristian Mungiu, além de “À Leste de Bucareste”, de Corneliu Porumboiu, e a elogiada antologia “Tales from the Golden Age”, exibida em Cannes este ano). Sem falar que ele faz cortes rápidos sem necessidade, numa tentativa de tornar as coisas mais agitadas dentro do elevador, e força uma narrativa não-linear mais ao final que também não tem razão, já que não traz nenhuma revelação sobre o que vimos antes. É uma pena que ele não consiga conduzir o filme, pois o plano final, com a tela do celular, é ótimo.
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.