Na tela, a dupla escreve um roteiro sobre uma epidemia que se espalha por todo o continente europeu. Em meio ao processo em que eles tentam completar o script para apresentá-lo a um produtor, vemos cenas do próprio filme (como imaginado por seus autores). As narrativas paralelas acabam colidindo em certo momento, com a ficção invandindo a realidade – e uma verdadeira epidemia começa a se espalhar.
O terror de “Epidemia” é conceitual na maior parte do tempo. Von Trier passa o filme todo criando atmosfera e fazendo piadas. Somente no último ato é que a bomba explode e temos a cena que causa verdadeira aflição no espectador. É um trecho desta cena que selecionei e você pode assistir logo abaixo. Nela, uma atriz é convidada para participar de uma sessão de hipnose que a levará para dentro do filme que os cineastas querem realizar. Já num nível subconsciente, ela passa a enxergar todo o horror que a praga espalhou pelas ruas.
Perceba que, mesmo nesses 10 minutos, podemos identificar a assinatura de von Trier e semelhanças com o que há em “Anticristo”. A hipnose, por exemplo (Willem Dafoe também hipnotiza Chartotte Gainsbourg em “Anticristo”). Nota-se ainda um certo sadismo, não só pelos demais personagens estarem se divertindo com aquilo que vêem (entre eles está von Trier), mas pela própria forma como a câmera é mantida fixa na atriz Gitte Lind enquanto ela se contorce e grita desesperada (aliás, Gitte também interpreta ela mesma, assim como Udo Kier, que faz aqui sua primeira colaboração com von Trier).
Como toda a obra de von Trier, “Epidemia” não é um filme fácil e não deve ser encarado como exemplar qualquer do gênero horror. O tempo todo ele desconstrói metáforas e a própria estrutura fílmica. Chega a ser tedioso em algumas partes (afinal, é von Trier!), especialmente entre os dias três e cinco (que nada mais são do que capítulos – divisão que o cineasta tradicionalmente adota em seus roteiros). Outras cenas parecem existir apenas para von Trier se exibir (tendência já observada também em outros de seus longas). Porém, mais uma vez é inegável seu talento para a composição dos quadros e a movimentação da câmera, especialmente nas sequências do “filme dentro do filme”.
“Epidemia”, que é o segundo longa de von Trier e o segundo dele a ser exibido no Festival de Cannes, é também a segunda parte da chamada “trilogia da Europa” (que conta ainda com “O Elemento do Crime”, 1984, e “Europa”, 1991) e pode ser encontrado em DVD fora do país. No Brasil, já foi exibido em mostras (principalmente em faculdades), mas nunca lançado comercialmente.
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.