Bastardos Inglórios

Armas são comuns nos filmes de Quentin Tarantino. Agora, que o cineasta fez seu primeiro filme de guerra, então, elas não poderiam faltar. Mas o que mais chama a atenção em “Bastardos Inglórios” é que o próprio filme é usado como arma por seu diretor.

Se fosse possível acabar com a Segunda Guerra Mundial através do cinema, “Bastardos Inglórios” certamente seria uma estratégia ideal (e das mais originais) para colocar um fim ao nazismo. O explosivo novo trabalho de Tarantino toma a liberdade para reescrever os livros de História e reimagina o cinema como arma – ideia adotada pelos soviéticos e pelos próprios nazistas através da propaganda e por diretores europeus e brasileiros que empunharam seus ideais políticos durante a Nouvelle Vague e o Cinema Novo. No caso de Tarantino, no entanto, o jogo é aberto, nada sutil, e está mais preocupado em mostrar a força da expressão artística de seu autor – que esbanja na tela o humor mórbido já conhecido desde “Cães de Aluguel”.

Marcas dos filmes de Tarantino estão espalhadas por todos os lugares em “Bastardos Inglórios”. A primeira, e mais óbvia, é a vingança, novamente personificada numa figura feminina – no caso a jovem francesa e judia Shosanna Dreyfus, interpretada por Mélanie Laurent que, num dos atos de transgressão do filme, rouba de Brad Pitt – chamariz absoluto do público recorde da carreira de Tarantino – o posto de protagonista. O ator, que nos trailers dava a impressão de liderar uma narrativa que na verdade corre apenas paralela à trama de Shosanna (não se preocupe em contar os escalpos nazistas colecionados pelo bando do tenente Aldo Raine), coloca à prova, mais uma vez, seu lado comediante e, mais uma vez, se sai muito bem. Só não tem mais espaço porque Tarantino parece ter gostado mais de brincar com o vilão, o coronel nazista Hans Landa, que parece ter crescido ainda mais em frente à câmera na atuação marcante de Christoph Waltz (premiado em Cannes por esse trabalho).



Também está na tela a famosa cena do mexican stand-off – que é aquele momento em que duas ou várias pessoas sacam suas armas e apontam uma para a outra ao mesmo tempo. Aqui, o mexican stand-off toma uma proporção numerosa na cena da taberna, uma das sequências mais tensas do longa, e também uma das mais surpreendentes pela facilidade com que Tarantino constrói e desconstrói o filme através do poder narrativo. Ele praticamente conclui ali uma célula dramática que tem vida própria, sem deixar de ser orgânica para a história como um todo. Só é uma pena que ele se despoje nessa sequência de um dos personagens mais interessantes, que acaba não tendo tempo de tela suficiente apesar de ser anunciado com alarde.

Violência, podolatria, falas memoráveis, citação a outros filmes em diálogos e na mise-en-scène, trilha sonora também repleta de referências e homenagens (especialmente a Ennio Morricone), divisão da história em capítulos, participações especiais de amigos (Julie Dreyfuss, Samuel L. Jackson, Harvey Keitel – esses dois últimos apenas com a voz), resgate de atores em decadência (desta vez é Mike Myers, mas seu papel não tem qualquer relevância, podendo ter sido feito por qualquer outro ator), pausas para flashbacks. Está tudo lá, como em todo filme do diretor. Mesmo assim, temos aqui um Tarantino mais contido no estilo, menos palhaço, ainda que o humor esteja presente em vários lugares. O mais importante ele mantém: a excelência no manuseio da câmera e no ritmo dos cortes (com o auxílio imprescindível de sua montadora de longa data, Sally Menke). É um serviço de carpintaria que ele parece refinar a cada filme, seja qual for o gênero em que trabalhe.

“Bastardos Inglórios” não é um filme exploitation como “Kill Bill” ou “À Prova de Morte”, mas também não é um filme de guerra sério, como os que são tradicionalmente feitos. Tarantino busca uma narrativa mais centrada na construção dos diálogos e menos na ação, talvez numa opção de se aproximar do cinema europeu. A primazia na arquitetura dos discursos de seus personagens impressiona (e é uma ótima ironia ver um senhor da palavra fazer questão de grafar o título do filme da forma errada, enfiando uma vogal a mais em “inglorious” e trocando outra em “bastards”). Porém, as cenas faladas algumas vezes dão a impressão de durarem tempo demais, e não oferecem punch-lines ou referências à cultura pop como nos acostumamos a encontrar na obra do cineasta. É, de toda forma, um sinal de que ele procurou não fazer mais do mesmo, ainda que esse mesmo não seja drenado por completo, felizmente.

Se esta é ou não é a obra-prima de Tarantino é uma questão subjetiva, mas é inegável que “Bastardos Inglórios” é uma visão bastante peculiar da terra sem lei em que se transforma qualquer guerra.

Nota:

Bastardos Inglórios (Inglourious Basterds, 2009, EUA/Alemanha)
direção: Quentin Tarantino; roteiro: Quentin Tarantino; fotografia: Robert Richardson; montagem: Sally Menke; produção: Lawrence Bender; com: Brad Pitt, Mélanie Laurent, Christoph Waltz, Eli Roth, Michael Fassbender, Diane Kruger, Daniel Brühl, Til Schweiger, Gedeon Burkhard, Jacky Ido, B.J. Novak, Omar Doom, August Diehl, Denis Menochet, Sylvester Groth, Martin Wuttke, Mike Myers, Julie Dreyfus; estúdio: Universal Pictures, The Weinstein Company, A Band Apart, Zehnte Babelsberg, Visiona Romantica; distribuição: Universal Pictures. 153 min