“Abraços Partidos”, de Pedro Almodóvar, fecha esta temporada em que o cinema foi seu próprio espelho. Estariam os cineastas refletindo sobre seus caminhos ou seria a própria arte pedindo uma revisão? Sem dúvida, o século da imagem deixou uma baita herança para diretores de diferentes gerações, que hoje se encontram numa época ainda mais proeminente quanto à presença de telas, dos mais variados tipos e tamanhos, em nosso cotidiano. E é ótimo ver um veterano como Coutinho tão imerso num processo de redescoberta dos significados que uma câmera consegue produzir, assim como ver Gomes se encantar com as possibilidades que surgem à sua frente enquanto filma. Ao mesmo tempo, temos Mann na convergência da tecnologia, entre a película e o digital, enquanto Kitano claramente promove uma sessão de auto-análise em seus três últimos filmes.
Chegamos, então, a Tarantino e Almodóvar, cineastas que sempre usaram referências cinematográficas em seus trabalhos. Ambos tiveram seus filmes exibidos no Festival de Cannes deste ano e ambos foram saraivados por acusações de estarem se repetindo e se auto-reverenciando. É verdade que os dois, em dado momento do mar de citações, voltam a câmera para suas próprias carreiras (no caso de Almodóvar, ele praticamente recria uma cena de “Mulheres à Beira de um Ataque de Nervos”). E, sim, esses diretores seguem cartilhas específicas. O que não se pode confundir é repetição com fidelidade de estilo.
“Abraços Partidos” não é o melhor Almodóvar, assim como “Bastardos Inglórios” não é o melhor Tarantino. E nunca precisaram ser. Há essa expectativa de que grandes diretores irão se superar a cada trabalho, o que é natural quando se fala de alguém competente, mas a noção de fracasso quando esse “melhor” não vem é que é injusta. E “Abraços Partidos” se torna um grande filme graças, justamente, a seus “melhores momentos”, e não por seu conjunto, que é desequilibrado.
A história em si não é lá muito inspirada e se perde mais ou menos após uma hora e meia, quando Almodóvar parece preocupado demais em criar um gancho dramático para a conclusão. Mas nessa narrativa, em meio a histórias de paixões súbitas e não correspondidas, revelações de família, vinganças pessoais e redenção (o Almodóvar básico), estão cenas sublimes, imagens que só mesmo o cinema – e cineastas do garbo de Almodóvar – conseguem criar. O sexo no sofá. A lágrima que cai no tomate. A transa sob o lençol. Páginas ao vento. Um quebra-cabeça de fotos picotadas. É o banal transformado em extraordinário. Existe, enfim, um espírito vigoroso em cada fotograma (ou em cada quadro, para não correr o risco de o termo ficar datado na era digital) quando se fala em esvaziamento. A TV pode estar contando histórias melhores hoje, mas não detém o mesmo poder que uma dessas pequenas sequências de “Abraços Partidos” consegue exercer sobre o espectador interessado em expressão visual. E são cineastas, como Almodóvar e Tarantino, verdadeiros guerreiros por acreditarem piamente nessa distinção.
Insisto ainda na relação entre Almodóvar e Tarantino: creio que a dita “repetição” a que os dois incorrem está mais para um aprofundamento, uma evolução natural de seus estilos. Seria repetição se eles não trouxessem algo novo. Mas quando vemos o uso do cinema como personagem em “Bastardos Inglórios” não estamos diante de algo inédito? Tarantino usa todas as suas “marcas registradas”, mas, no ato final, ele está claramente fazendo um manifesto sobre aquilo em que acredita: na força do cinema, força esta que o fez ser cineasta. Há algo sendo dito ali. O mesmo com Almodóvar: “Abraços Partidos” é reconhecível a milhas de distância, mas o diretor demonstra uma preocupação em falar sobre a imagem que, até então, não havíamos visto em seus trabalhos. É de onde surgem outros “melhores momentos” que engrandecem o longa. O teste de maquiagem de Penélope Cruz (que também serve para Almodóvar enaltecer sua declarada adoração pela atriz, que aqui tem até mesmo os ossos filmados num exame de raio-x). A obsessão do filho em documentar a tragédia da família. O homem que se vê duplamente traído ao ser encurralado pelas duras palavras de sua mulher e da imagem dela projetada na parede. O ex-cineasta, agora cego, que toca com a ponta dos dedos a imagem de sua amada numa tela, como se pudesse lê-la identificando cada granulação como um ponto do Braille. Esta cena, aliás, constitui não só uma bonita rima visual: é a própria poesia.
direção: Pedro Almodóvar; roteiro: Pedro Almodóvar; fotografia: Rodrigo Prieto; montagem: José Salcedo; música: Alberto Iglesias; produção: Esther García; com: Penélope Cruz, Lluís Homar, Blanca Portillo, José Luis Gómez, Rubén Ochandiano, Tamar Novas, Ángela Molina, Chus Lampreave, Kiti Manver, Lola Dueñas, Mariola Fuentes; estúdio: El Deseo, Universal International Pictures; distribuição: Universal Pictures. 127 min