O que mais as pessoas têm visto em “Ilha do Medo” são problemas. E realmente eles existem. O principal talvez seja a sensação que passa de ser um filme pesado – não por ser um filme de horror, já que por definição todos eles são “pesados”, mas por Martin Scorsese empregar um estilo tal que transmita a sensação quase física desse peso. São, afinal, quase duas horas e meia para um thriller que qualquer diretor meia-boca resolve em 90, 100 minutos.
Mas sabemos que Scorsese e “meia-boca” são antônimos. O que também sabemos é que Scorsese não precisa provar mais nada a ninguém, o que de forma alguma é desculpa para que ele faça filmes pouco interessantes. O que fica claro é que “Ilha do Medo” não é um projeto de paixão incondicional, como foi “O Aviador”, talvez o último em que sentimos essa entrega pessoal do cineasta. Há paixão em “Ilha do Medo”, mas apenas uma paixão rotineira, apenas pelo gosto de fazer cinema. Na verdade, gosto de viver cinema, já que Scorsese é praticamente um porta-voz desta arte em qualquer festival a que compareça, em qualquer país que visite, em qualquer entrevista que conceda e, enfim, em qualquer filme que faça. Talvez por querer sempre expressar este amor em seus filmes ele tenha carregado no tom empregado em “Ilha do Medo”.
Podemos perceber que há Hitchcock na composição de várias cenas e que há uma homenagem ou resgate dos filmes de terror psicológico dos anos 40 produzidos por Val Lewton (“Sangue de Pantera”, “A Sétima Vítima”, “Bedlam”, entre outros). Há também, por outro lado, uma ingenuidade típica de produções B (como o próprio personagem de Ben Kingsley, ator que sucumbiu a ofertas suspeitíssimas de papéis nos últimos anos). Ao mesmo tempo, podemos identificar tomadas que remetem ao delírio onírico presente nos filmes de David Lynch e sequências em que a computação gráfica aproxima o gênero do realismo fantástico – o mais perto que chegamos do que vemos hoje no cinema de horror dos grandes estúdios.
Aliás, ver um cineasta como Scorsese utilizar CGI desta forma mais deliberada é muito interessante. É quando se nota a diferença entre um diretor experiente, que não peca pelo excesso, e um que está começando e se deslumbra com a tecnologia. O uso dos efeitos em “Ilha do Medo” é preciso e surge apenas quando se faz necessário. É, como o próprio Scorsese disse, provavelmente o que Hitchcock optaria por utilizar se dispusesse dessa ferramenta à sua época.
É por tentar fazer um amálgama de tudo o que lhe atrai no cinema de horror que Scorsese faz o filme pesar. E diferente de Brian De Palma ou Quentin Tarantino, que homenageiam tudo o que gostam em forma de paráfrase (o que, na grande maioria das vezes, funciona perfeitamente), Scorsese incorpora ao seu estilo, de uma maneira mais orgânica, elementos do gênero e características dos cineastas que ele cita. A não ser pela obviedade da “tomada do chuveiro”, referência na velocidade da luz a “Psicose”, o filme todo corre como uma homenagem mais sensorial. Isto é, a intenção se faz notar, mas temos consciência o tempo todo de que há uma criação per se por trás da ideia. As citações estão mais escondidas e o filme se apresenta como trabalho genuíno de Scorsese, com todos os seus planos típicos, arquitetados ao lado da montadora Thelma Schoonmaker e do diretor de fotografia Robert Richardson.
“Ilha do Medo” tem seus defeitos, mas é daqueles filmes que tendem a crescer na(s) revisão(ões), dependendo do interesse do espectador. Sabemos que não é o melhor que Scorsese consegue fazer, mas ainda assim há mais aqui com o que se entreter (e, mais uma vez, isso depende do interesse do espectador, embora ele não precise ser o cinéfilo que Scorsese gostaria que todos fossem) do que em 60-70% do que se produz no gênero hoje.
direção: Martin Scorsese; roteiro: Laeta Kalogridis (baseado no livro de Dennis Lehane); fotografia: Robert Richardson; montagem: Thelma Schoonmaker; produção: Brad Fischer, Mike Medavoy, Arnold Messer, Martin Scorsese; com: Leonardo DiCaprio, Mark Ruffalo, Ben Kingsley, Max von Sydow, Michelle Williams, Emily Mortimer, Patricia Clarkson, Jackie Earle Haley, Ted Levine, John Carroll Lynch, Elias Koteas; estúdio: Paramount Pictures, Phoenix Pictures, Sikelia Productions, Appian Way; distribuição: Paramount Pictures. 138 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.