Acho que ninguém que assistir a este filme vai dizer que assistiu a uma comédia romântica, mas é isso o que ele é. Estrelando um Jim Carrey que remete a “O Show de Truman”, “Brilho Eterno” começa mostrando o princípio de um romance entre ele e Kate Winslet, com seus cabelos cor Ruína Azul. Começo? Na verdade, é o início do fim. Logo depois, Carrey aparece aos prantos em seu carro, enquanto os créditos iniciais surgem (quando já temos mais de 20 minutos de filme).
Joel, o sujeito tímido que se apaixona por toda mulher que lhe dá um pouco de atenção, está chorando porque encontrou Clementine diferente da “Tangerina” que ele namorava: não só ela mudou a cor dos cabelos como decidiu apagar qualquer lembrança de Joel da memória e começou uma “nova vida”, agora ao lado de outra pessoa. Por que Clementine fez isso? Joel não parece necessariamente interessado em descobrir, mas se sente motivado o suficiente para passar pelo mesmo processo e se livrar das lembranças da namorada. Para isso, ele recorre à mesma clínica – que atende pelo apropriado nome de Lacuna Inc. – onde sua mente é vasculhada e Clementine é apagada aos poucos.
Nesse ponto, o espectador já começa a se perguntar o que diabos está acontecendo na tela. Uma hora, Joel está chegando ao seu prédio, depois ele volta à mesma cena, que agora está envolta em breu. A seguir, os técnicos da Lacuna aparecem em seu apartamento, aplicando o procedimento de esquecimento, quando luzes vermelhas no equipamento se acendem e parecem interferir no que se passa dentro da mente de Joel. As cenas aceleram, pulam, os personagens não falam coisa com coisa, fragmentos de imagem desaparecem na mesma velocidade com que surgem. Na verdade, isto não é o cérebro de Joel, mas, sim, o cérebro do roteirista Charlie Kaufman funcionando.
Kaufman, um dos melhores em seu trabalho atualmente (“Quero Ser John Malkovich” e “Adaptação” são dele, basta dizer), amarrou o roteiro de “Brilho Eterno” de tal forma que assistir ao filme duas vezes é uma experiência quase que obrigatória para não se cometer a injustiça de dizer que ele não faz sentido. Faz, sim. É como um quebra-cabeças, que você monta pela primeira vez e encontra um pouco de dificuldade em encaixar todas as peças, mas consegue e fica feliz com o resultado. Na segunda vez que o monta, você já sabe onde estão as peças e se torna mais fácil vislumbrar onde cada uma se encaixa. Quando termina, foi tão ou mais divertido, agora sabendo o lugar exato de todas as coisas. É algo muito engenhoso. O filme avança no tempo, volta, cria ilusão de retorno, brinca com a percepção do espectador, fazendo-o ter que prestar bastante atenção no que está sendo mostrado para não se perder.
O que colabora na criação dessa atmosfera aparentemente insana é a imaginativa direção de Michel Gondry, criando situações fantásticas que se passam na cabeça de Joel. Gondry se diverte usando truques de ilusão de ótica (a cena em que Carrey percorre um pedaço de rua que parece sempre começar ao contrário é apenas um bom exemplo), engana nossos olhos, faz a gente se sentir meio como o Joel, dentro da cabeça do personagem, vendo aquela loucura toda em que ele também está perdido. Quando nos lembramos de fatos que nos marcaram é bem daquele jeito que acontece, uma memória ligando a outra e vamos visualizando os cenários e as pessoas em nossa memória (e repare na sutileza da cena em que o Dr. Mierzwiak, dentro da cabeça de Joel, diz o nome de seu assistente fazendo um certo esforço – na verdade, ele é uma criação da memória e é o próprio Joel que está se esforçando para lembrar o nome do rapaz que o médico lhe disse naquela tarde).
Graças a Gondry e Kaufman, “Brilho Eterno” trata seu tema com um senso intimista, aproximando a experiência do protagonista das nossas ou da de alguém que existe fora da tela, porque brigar e se desentender em um relacionamento é algo que também acontece do lado de cá. É um filme que se faz sentir verdadeiro, por mais absurdo que pareça e seu conceito seja tão surreal quanto o de um teletransporte em uma ficção-científica. Isso pela própria forma como ele lida com o apagamento das memórias, não tratando esse artifício como uma ameaça ou algo a ser criticado. A título de comparação: em “Minority Report”, o sistema de prisão preventiva é colocado à prova; já aqui, seria uma preocupação desnecessária julgar o “serviço” prestado pela Lacuna. Ele não é um fim, mas um meio, funciona como fio narrativo – fundamental para a genialidade do roteiro.
O filme me deixou pensando: enfim, o amor é uma conexão entre duas pessoas baseada na experiência delas uma ao lado da outra, ou um sentimento mais forte que os limites da mente? A conversa entre Joel e Clementine no final do filme talvez lhe forneça uma resposta a esta indagação. Talvez o amor atue em um nível subconsciente onde nem a mais avançada tecnologia, real ou surreal, tenha conseguido chegar. Talvez. O certo é que “Brilho Eterno” é, finalmente, uma comédia romântica original, que se coloca acima do gênero. É o melhor de Kaufman até agora e, para mim, o filme definitivo sobre relacionamentos. Melhor do ano, com certeza.
Ps.: Não perca a trilha sonora, que, além do introspectivo instrumental de Jon Brion (não estranhe se “Magnólia” lhe vier à cabeça), conta com canções inspiradas de Beck e The Polyphonic Spree, a dançante “Something”, de The Willowz, entre outras.
texto originalmente postado em 2 de agosto de 2004
Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças (Eternal Sunshine of the Spotless Mind, 2004, EUA)
direção: Michel Gondry; roteiro: Charlie Kaufman; fotografia: Ellen Kuras; montagem: Valdís Óskarsdóttir; música: Jon Brion; produção: Anthony Bregman, Steve Golin; com: Jim Carrey, Kate Winslet, Elijah Wood, Mark Ruffalo, Kirsten Dunst, Tom Wilkinson, David Cross, Jane Adams, Thomas Jay Ryan, Gerry Robert Byrne; estúdio: Anonymous Content, Focus Features, This Is That Productions; distribuição: Universal Pictures. 108 min