Você está em casa e resolve sair. Quer ir ao cinema. Pesquisa em um jornal ou na internet qual filme e qual sessão pegar. Decide ir naquele que está em exibição em todos os shoppings da cidade. Pode ser porque tem aquele ator que você gosta, ou o título te chamou a atenção, ou, se bobear, a resumidíssima sinopse do jornal te atraiu. Talvez pode ser a continuação daquele filmaço. Ou a adaptação do livro sensacional que você leu alguns meses atrás.
Você chega no shopping. Se for de carro, paga X no estacionamento. Na bilheteria paga 2Y pelo ingresso (o seu e de sua namorada ou namorado). Claro, não falta a pipoca tamanho G e a Coca-Cola tamanho GG, tudo isso pelo valor Z.
Depois de uma hora e meia, duas horas, você sai do cinema satisfeito. Se chegou a pensar no dinheiro, concluirá que o gasto de X + 2Y + Z valeu a pena. Mesmo se o filme for aquele que você já sabe o final no primeiro minuto da projeção, que tem personagens que você já viu mais de quinhentas vezes em outras obras diferentes, aqueles clichês que reconhece desde sempre. Sim. Pagou feliz para ver algo que você sabe como é, sabe como termina, já viu em trocentas outras oportunidades e não traz nada de novo. E não só você. Milhões de pessoas também tiveram um gasto parecido.
No início de “Tudo Pode Dar Certo”, Boris, personagem de Larry David, coloca você, eu, o público, no foco da discussão. Ele olha para a câmera e diz: “Há uma plateia lotada olhando para nós. Eles pagaram grana alta pelos ingressos para que um idiota de Hollywood possa comprar uma piscina maior”. E questiona o que você está fazendo sentado na sala de cinema: “Por que querem saber a minha história? Nos conhecemos? Nos gostamos?”
Pelo início, já é perceptível o grande objetivo de “Tudo Pode Dar Certo”. Mas, como em muitas obras de Woody Allen, o tema pode passar despercebido e o filme ser absorvido como uma comédia engraçada e passageira. Também é assim com “Vicky Cristina Barcelona”. Diálogos inspirados, personagens interessantes e situações cômicas não decepcionam os que estão à procura de um filme agradável, feito para rir. Mas “Tudo Pode Dar Certo” é mais.
O filme, ao longo de sua duração, escancara uma grande crítica à indústria hollywoodiana e ao público de cinema que ela criou. Aliás, ninguém melhor que Allen para falar sobre isso: um diretor novaiorquino, que não tem público no seu país e cujos projetos nenhum produtor americano está muito disposto a bancar.
Para realizar sua crítica, Allen brinca com a mesma fonte daqueles que questiona. Mas faz de forma consciente, proposital, exagerada e sarcástica. Essa escolha torna “Tudo Pode Dar Certo” uma grande obra. Se o público gasta seu dinheiro feliz com um filme-padrão, então é isto que eles terão.
O roteiro de qualquer bom filme precisa de um conflito. Mas um filme-padrão precisa deixar o conflito muito claro. Ele subestima seu público ao achar que o espectador não vai perceber algo um pouco mais sutil. Ora, quer conflito mais claro do que o relacionamento entre Boris, um velho, novaiorquino, hipocondríaco, mal-humorado, sarcástico, suicida (David) e Melody, uma garota do interior de 21 anos, ingênua, meio tapada, de coração maior que o mundo e feliz da vida (Evan Rachel Wood)? Em filmes mais clássicos, o personagem sofre uma mudança. Vai passando por episódios que o transformam. Começa de um jeito e termina de outro. Nas boas produções, a mudança é feita com personalidade, charme, inteligência e respeito ao público. No filme-padrão ela é óbvia e inverossímil. Em “Tudo Pode Dar Certo”, a personagem de Patricia Clarkson, mãe da garota vivida por Evan Rachel Wood, começa sua participação como o clichê da mulher do interior: brega, religiosa, alcóolatra e preconceituosa. Ela vai para Nova York à procura da filha e, em questão de algumas cenas, vira o clichê da artista: liberada sexualmente, se relaciona com dois homens ao mesmo tempo, usa bandana na cabeça e é blasé. A mesma coisa com a personagem de Wood. Se no início Melody é a garota tapada que não fala nada muito profundo, do meio para o fim de “Tudo Pode Dar Certo” começa a proferir as teorias de Boris, mesmo não fazendo muito sentido no contexto em que ela as diz.
Os filmes-padrão também abusam dos clichês e personagens estereotipados. Allen também abusa, conscientemente e de forma crítica, dos estereótipos. Da mulher do interior, do gay (decorador, amante da arte), do sedutor (carismático, charmoso, bonito, insistente, vive em uma casa flutuante). E mais. O diretor brinca com uma das coisas que mais me irrita nos filmes-padrão. Neles, tudo é tão esquemático e fabricado que não há nenhum charme, autenticidade e personalidade. Para parecer que é original e fazer com que o público se sinta inteligente e, ainda por cima, conseguir amarrar tudo que está solto, esse tipo de obra usa o artifício do final surpreendente. Algo cai do céu para fechar todas as pontas. Você percebe isto em “Tudo Pode Dar Certo” quando algo, literalmente, cai do céu.
Mas a grande tacada de mestre de Allen é colocar em questão o grande criador de um filme-padrão. O roteirista-padrão. O roteirista, em uma definição bem rápida, é aquele que cria a história e os personagens. O roteirista-padrão cria, conscientemente, os personagens estereotipados, o conflito óbvio, a mudança inverossímil, os clichês. Ele sabe que está desenvolvendo uma trama que não tira o espectador de sua zona de conforto. Mas faz mesmo assim, pois é o que parece dar retorno para os produtores de Hollywood. É muito inteligente, portanto, a escolha de Larry David como o protagonista de “Tudo Pode Dar Certo” e é mais inteligente ainda a postura do personagem ao longo do filme.
David foi roteirista de “Saturday Night Live” e “Seinfeld”, além de escrever e protagonizar o seriado “Curb Your Enthusiasm”. Em “Tudo Pode Dar Certo”, seu personagem, Boris, se autoproclama como um ser superior, um gênio. Também se dirige ao público várias vezes e todos os outros personagens pensam que é uma atitude insensata. No fim, ao conversar conosco, ele explica: “Viu? Sou o único que vê a situação inteira . É isso que eles querem dizer com gênio”.
Ora, o roteirista-padrão é aquele que conhece os ingredientes de um filme-padrão, sabe como usá-los, sabe que não resultarão em um filme diferente de vários outros que já existem e sabe que, mesmo assim, terá um bom público, que irá pagar para ver repetecos. E na visão da indústria hollywoodiana, um cara que conhece os ingredientes e sabe fazer a receita que dê retorno financeiro, só pode ser um gênio.
Tudo Pode Dar Certo (Whatever Works, 2009, EUA/França)
direção: Woody Allen; roteiro: Woody Allen; fotografia: Harris Savides; montagem: Alisa Lepselter; produção: Letty Aronson, Stephen Tenenbaum; com: Larry David, Evan Rachel Wood, Patricia Clarkson, Henry Cavill, Ed Begley Jr., Carolyn McCormick, Olek Krupa, Christopher Evan Welch, John Gallagher Jr.; estúdio: Sony Pictures Classics, Wild Bunch, Gravier Productions, Perdido Productions; distribuição: Califórnia Filmes. 92 min