Obs.: Este vídeo-ensaio foi realizado em 2019 com base no texto a seguir, publicado em 2010.
Visto sob certos aspectos, Ayrton Senna é o super-herói perfeito. Quando entrava no cockpit do carro, ele ganhava superpoderes e “voava”. Ele vestia um uniforme quando entrava em ação, e chegou até mesmo a exibir um escudo no peito com o “S” do instituto que leva seu nome.
Senna teve um fiel amigo, o chefe da McLaren, Ron Dennis, e um mentor, o Professor Sid Watkins, delegado da equipe médica e de segurança da Fórmula 1. O piloto brasileiro teve os pais sempre ao seu lado, namorou mais de uma garota, foi manchete de vários jornais. E a cada corrida que ele vencia, era como ele se salvasse o mundo para nós, brasileiros. Ele tem até uma música tema.
Senna enfrentou vários inimigos, na pista e fora dela, incluindo o supervilão Jean-Marie Ballestre, falecido ex-presidente da FIA, a Federação Internacional de Automobilismo. No polêmico Grande Prêmio do Japão de 1989, Ballestre se aliou àquele que se tornaria o arquirrival de Senna, o tetracampeão da Fórmula 1 Alain Prost. Num arco dramático que poderia ter se tornado uma memorável revista em quadrinhos, Prost se converteu de parceiro de Senna em seu principal adversário. E é essa rivalidade histórica que serve como fio condutor do documentário “Senna” – que por todas essas razões é, virtualmente, o melhor filme de super-herói já feito.
Dirigido pelo cineasta britânico Asif Kapadia (“Um Guerreiro Solitário”), o longa-metragem tem o grande mérito de contar uma história, e não apenas traçar um perfil do personagem biografado. E Kapadia constrói a narrativa sem recorrer, em momento algum, às chamadas “cabeças falantes”. São entrevistadas personalidades da Fórmula 1, jornalistas esportivos, incluindo o brasileiro Reginaldo Leme, e a irmã de Ayrton, Viviane Senna. Mas nós apenas ouvimos as vozes daquelas pessoas. Tudo o que vemos é essencialmente formado por imagens de arquivo pessoal, de telejornais e das transmissões das corridas pela TV.
Para os aficionados, a qualidade das imagens, com todos os artefatos e limitações de suas fontes, converte-se numa estética saudosista, de uma época em que não se falava em alta definição, plasma, LCD ou LED. É um retorno ao passado para quem viu tudo aquilo acontecer na TV de casa, pois as imagens são apresentadas tal como elas estão gravadas em nossa memória.
As cenas, portanto, já estavam prontas, filmadas ao longo de três décadas. Coube a Kapadia e sua equipe aquele que é o trabalho que define o cinema: montar um filme a partir do imenso material disponível. E é formidável o modo como as cenas de bastidores foram encaixadas, fornecendo toda a dramaticidade que o filme pede: do humor intrínseco à personalidade de Ayrton, passando pela tensão dos momentos decisivos de sua carreira e, finalmente, culminando na emoção das magníficas vitórias, como a no Japão em 1989, que viria a ser anulada, e no Brasil em 1991, completando a prova com apenas uma marcha. Quando chega o momento do mais trágico dos fins de semana, o filme já conquistou toda a plateia que, a pesados suspiros, acompanha a série de acidentes no circuito de Ímola que finda no muro da curva Tamburello.
“Senna” é um filme necessário. Não só por proporcionar a toda uma geração o reencontro com seu ídolo, mas por apresentar um homem que foi exemplo de garra, determinação, dedicação, responsabilidade e humildade a toda uma outra geração – que, ao longo dos últimos 16 anos, cresceu sem saber o que é torcer por Ayrton Senna nas pistas aos domingos.
Trágico, porém, é constatar que, hoje, prevalece tudo aquilo que Senna combatia – a politicagem em detrimento do esporte, e não apenas na Fórmula 1. Como kryptonita, aquilo que deu origem à força de Senna também era seu ponto fraco: “Eu não posso parar”, ele disse ao decidir ir para a pista no Grande Prêmio de San Marino, em 1º de maio de 1994. O herói sucumbiu numa fatalidade. Os supervilões mudaram seus nomes, mas ainda estão por aí.
Onde ver "Senna" no streaming:
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.