A primeira tomada de “Além da Vida” já dá ao espectador uma visão do paraíso: é a vista da sacada de um quarto de hotel beira-mar, onde um casal passa férias. Um dos hóspedes é uma jornalista francesa famosa, vivida por Cécile De France. Ela é um dos três personagens principais deste novo filme de Clint Eastwood, que se desdobra em outras duas histórias que tocam no tema da vida após a morte. Os outros dois protagonistas são um médium aposentado (Matt Damon) e um garotinho britânico (o estreante Frankie McLaren) que lida com uma perda.
Nas três histórias, Eastwood trabalha com as noções do que encontraremos após a morte. O paraíso que abre o filme logo é dilacerado numa surpreendente sequência que deixa no chinelo qualquer filme-desastre em que o espetáculo dos efeitos especiais vale mais do que as pessoas envolvidas numa tragédia. Eastwood evita o sensacionalismo numa verdadeira lição de como conduzir uma cena unicamente através dos personagens com os quais nos identificamos (nos filmes de Roland Emmerich e Michael Bay, os efeitos é que são os personagens, e ninguém consegue se identificar com um prédio desabando ou com um avião em chamas). Ao final daquela sequência, a jornalista francesa tem uma visão pós-morte de um lugar que o médium americano se acostumou a enxergar quando fazia a “conexão” com seus pacientes/clientes. Porém, essa visão é nebulosa, aparecem apenas vultos de pessoas e construções. E tudo é muito rápido. Mais adiante, alguém irá dizer como é estar lá, mas jamais veremos de fato como é esse lugar para onde supostamente iremos após morrermos.
Isso é Eastwood mantendo o foco no que realmente importa. Bem diferente do que filmes como “Nosso Lar” e “Amor Além da Vida” mostram, o de Eastwood não é doutrinário. Existe nele a crença dos personagens – logo, também a a crença do diretor e do roteirista – de que a vida não se encerra com a morte, mas o espectador jamais saberá como é esse suposto “outro lado” – que, afinal de contas, não passa de uma suposição, mesmo que esteja nas palavras de um médium. Ninguém foi lá, filmou, voltou e colocou no YouTube. O que “Nosso Lar” e “Amor Além da Vida” transformam em fato, Eastwood trata como possibilidade. Se existe uma razão para ele ter investido em efeitos digitais para criar um desastre, e não a arquitetura do “além”, a razão mais provável é esta.
Eastwood trabalha com a suspensão da crença, mas sempre mantendo o respeito por aquilo que pode (ou não) existir, inclusive criticando aqueles charlatões que se aproveitam da fragilidade alheia para lucrar. No final, não importa se o “além” existe ou não, se ele é assim ou assado, ou se você pegar ou não uma carona em um carro que irá se acidentar é coincidência ou predestinação. O que importa para o filme é que é da vida do lado de cá que devemos cuidar, principalmente dos laços que nos unem às pessoas que amamos, mesmo aquelas que não estão mais ao nosso lado. E é a manutenção ou o rompimento desses laços que tem pautado toda essa última década da carreira de Eastwood, na qual ele não se cansa de fazer um cinema acessível sem perder a elegância, vide suas últimas produções, “Gran Torino” e “Invictus“.
Além da Vida (Hereafter, 2010, EUA)
direção: Clint Eastwood; roteiro: Peter Morgan; fotografia: Tom Stern; montagem: Joel Cox, Gary Roach; música: Clint Eastwood; produção: Clint Eastwood, Kathleen Kennedy, Robert Lorenz; com: Cécile De France, Thierry Neuvic, Jay Mohr, Matt Damon, Frankie McLaren, George McLaren, Lyndsey Marshal, Bryce Dallas Howard; estúdio: Amblin Entertainment, The Kennedy/Marshall Company, Malpaso Productions; distribuição: Warner Bros. 129 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.