A franquia “X-Men” parece cumprir uma função essencial no departamento de cinema da Marvel. O primeiro filme, dirigido por Bryan Singer e lançado em 2000, praticamente abriu as portas para a tradicional empresa de quadrinhos se aventurar nas telas grandes e construir o seu império cinematográfico. Não foi o primeiro a chegar aos cinemas (“Blade” e “Howard, The Duck” foram lançados antes), mas certamente foi a primeiro a se associar com mais força à marca Marvel e levá-la para um público mais expressivo em números.
Depois de “X-Men”, vieram “Homem-Aranha”, “Homem de Ferro”, “Hulk”, “Demolidor”, “Thor” e outros. A chegada de “X-Men” nos cinemas é resultado de uma co-produção entre Marvel e Fox. Seu sucesso abriu as portas para outros estúdios se associarem à Marvel (“Homem-Aranha, “Demolidor”) e a própria Marvel passar a produzir no cinema sozinha (“Homem de Ferro”, “Thor”, “Hulk”), através da Marvel Studios
Hoje, a marca é reconhecida e aparentemente estável no audiovisual. Aparentemente porque o grande problema de uma marca que cresce e ganha dinheiro demais é sacrificar uma visão empreendedora , sem riscos, e passar a repetir os mesmos passos que a fez juntar seus milhões.
Apesar de ser uma das primeiras franquias da Marvel a chegar aos cinemas, “X-Men” não é a mais rica. Enquanto os filmes da trilogia mutante nunca ultrapassaram a barreira de US$ 500 milhões nas bilheterias, os longas do “Homem-Aranha” chegaram ao redor dos US$ 800 milhões. Não que US$ 500 milhões sejam ruins, mas já que dá para fazer 800, por que não aproveitar? O que se viu, então, foi a consagração de “Homem-Aranha” como o produto “Marvel” e a subsequente repetição de sua narrativa.
O homem imaturo que se vê em uma realidade diferente, causadora de seu amadurecimento. Há o interesse amoroso, com a função de levar o filme para o romance e, algumas vezes, comédia romântica. Não é assim nos carros-chefe da Marvel Studios ? “Homem de Ferro”, “Thor” e “O Incrível Hulk”? Não é essa a impressão dada pelo trailer de “Capitão América”? Não ficamos sentados no cinema até o fim dos créditos pois sabemos que um produto Marvel tem sempre uma surpresinha final? É fácil identificar filmes da Marvel, além de seus heróis. E funcionam, certo? “Homem de Ferro” continuou a trajetória de lucros, assim como “Thor”. E, acima de tudo, são filmes divertidos.
Porém, a cada filme, a receita narrativa fica mais clara e a falta de frescor cada vez mais identificável. Certamente trata-se de uma tendência que pode condenar o “produto Marvel”. Afinal, “Homem de Ferro” lucra, mas não chega aos pés do fenômeno que foi o último “Batman”, da DC Comics e totalmente alheio ao estereótipo dos filmes de heróis. “Thor” lucra, mas sua arrecadação é menor que a de “Velozes e Furiosos 5”, o quinto filme de uma franquia que nem é tão tradicional assim.
É nesse cenário que surge “X-Men: Primeira Classe”, um novo filme e recomeço da franquia. Remonta as origens do grupo de mutantes, através das histórias do Professor Xavier e Magneto que, em um dado momento, se cruzam. Cada um deles lida com seu gene mutante da forma que a vida lhes reservou. Eric Lensherr viu a mãe morrer na sua frente e foi explorado por seus poderes mutantes. Charles Xavier teve uma vida rica financeiramente e, por isso, cheia de possibilidades, dentre elas, estudar a sua própria característica excepcional. O primeiro vê um mundo hostil aos mutantes, de impossível melhora, já que humanos, cegos em seus preconceitos, nunca conseguiriam absorver a ideia de poderes extraordinários. Xavier também percebe esse mundo hostil, mas acredita que existe esperança, que é possível a convivência pacífica entre humanos e mutantes. Apesar dos pensamentos distintos, Eric e Xavier se se tornam amigos em um primeiro momento, unidos pela causa mutante.
Daí surgem as diferenças entre “X-Men” e outros longas da Marvel os “produtos puros” da Marvel Studios. “X-Men” não é um filme sobre um personagem específico, não existe um protagonista propriamente dito. É um filme sobre um tema: a aceitação. Mas não a aceitação de mutantes por humanos, humanos por mutantes ou mutantes por outros mutantes. Essa foi a questão tratada nos filmes anteriores. Em “Primeira Classe” o mote é a aceitação dos mutantes por eles mesmos e, a partir do momento que ela ocorre, cada um lida com a própria existência e o mundo ao redor – que a influencia, de uma forma particular. Por isso, não dá para dizer que Magneto ou Xavier sejam os protagonistas do longa. O verdadeiro protagonista, se é para achar um, é a relação entre eles. É ela que, ao longo do filme, percorre um trajetória de mudança e provoca as mudanças nos caminhos de outros personagens.
Por isso que, se alguns personagens parecem rasos ou pouco dimensionais, é porque eles estão a serviço de um tema maior. Afinal, são muitas figuras que desfilam em “X-Men: Primeira Classe” e quase todas elas tem uma certa profundidade, ou seja, não são enfeites, como era a Mística e a Tempestade nos filmes anteriores. A Mística aqui, interpretada com talento por Jennifer Lawrence, é uma personagem atormentada por sua aparência, incomodada por não poder (ou conseguir) assumir o seu verdadeiro eu, por mais que queira. Toda a sua trajetória é reflexo do que sente.
Através de interessantes soluções visuais, alguns personagens menores conseguem ir além de adornos narrativos e complementam a história de uma forma mais consistente. Em uma única sequência, já conseguimos perceber que a mutante Angel Salvadore é uma menina desconfiada que, provavelmente, foi muito explorada na vida e que Havok é uma espécie de atrevido de bom coração. Claro que não se tratam de soluções geniais, mas são necessárias para o tema maior e, mais importante, são eficazes.
É esperado, portanto, que com tanto personagens, o roteiro de Matthew Vaughn, Jane Goldman, Zack Stentz e Ashley Miller não tivesse uma profundidade almodovariana para cada um. E, claro, não se trata de algo perfeito. Poderia ser um pouco maior. Talvez, se a história fosse concebida como uma trilogia, o resultado seria mais satisfatório em termos narrativos. Há alguns momentos um pouco encavalados aqui e ali, para deixar claro o que está se passando no interior dos personagens. Mas, o fato é que funciona para a construção do todo, da jornada dessa relação entre Magneto e Xavier e seus reflexos. Acreditamos na escolha de cada personagem, porque eles foram minimamente trabalhados nos minutos anteriores. O diretor Matthew Vaughn também fez uma ótima escolha ao colocar cenas reais da época do longa, como os pronunciamentos de John Kennedy (o filme é ambientado na década de 60, no auge da Guerra Fria).
Não há em “X-Men: Primeira Classe” um ingrediente claro que remeta ao “produto Marvel”. A narrativa é diferente. Aliás, assim como “Batman”, nem parece um filme de super-heróis. Está mais para um thriller com personagens mutantes.
Daí voltamos à importância da série “X-Men”. Ao sair da sala, me informaram que há uma preocupação na bilheteria de “X-Men: Primeira Classe”. Afinal, a divulgação realmente não está das melhores. E, como já comentado, a narrativa difere de outras de super-heróis por aí. Mas, por mais que a publicidade do longa merecesse um esforço maior, talvez seja um filme com a função de teste.
É uma suposição baseada em dados não confirmados, na verdade. Não consegui encontrar números oficiais, mas rumores da web dizem que o orçamento de “X-Men: Primeira Classe” foi de US$ 80 milhões. Não é confirmado, mas tudo indica que não foi orçamento mais polpudo de todos os tempos, até mesmo pelo próprio desgaste da franquia nos cinemas e pela escolha de Vaughn, um cara que já provou fazer coisas muito bacanas com pouco dinheiro (“Kick-Ass” custou US$ 50 milhões).
O fato é que o primeiro “Homem de Ferro” custou US$ 140 milhões, o segundo ficou na casa dos US$ 200 milhões, “Thor” foi realizado com US$ 150 milhões e, no fim das contas, são filmes muito parecidos. Como disse, são divertidos, mas um dia cansa. O próprio Vaughn deu algumas declarações ao jornal Los Angeles Times, indicativas do particular estado dos filmes de super-heróis. Segundo ele, ao explicar por que aceitou fazer o filme, o gênero não dura por muito mais tempo.
“Está com hora marcada e em alguns casos o controle de qualidade não é o que deveria ser. As pessoas estão ficando cansadas. (…) Sempre quis fazer um filme de super-heróis de alto orçamento e acho que ultrapassamos o Rubicon (Vaugh usa a palavra Rubicon no sentido de ‘caminho sem volta’) em relação aos filmes de super-heróis. Acho que a oportunidade de dirigir um ocorrerá mais duas ou três vezes. Depois, o gênero vai morrer por um tempo pois o público já o engoliu demais. É um campo cheio. Cheio demais.”
Pode parecer pessimista, mas é um panorama que parece se formar por motivos já expostos. É claro, portanto, que Vaughn não faria o mesmo filme de sempre. E, possivelmente, a Marvel a Fox, ao escalá-lo, não estivesse esperando o mesmo filme de sempre. Afinal, ele foi selecionado pela própria empresa para dirigir “X-Men: O Confronto Final”, antes de cair nas mãos de Brett Ratner. Em entrevista ao jornal Daily Telegraph, antes de ser escalado para realizar “X-Men: Primeira Classe”, Vaughn revelou porque decidiu abdicar da direção do longa anterior.
“Não tive tempo para realizar o filme que gostaria. Tinha uma visão sobre como deveria ser e queria ter a certeza de que estava fazendo um filme tão bom quanto ‘X-Men 2’. Sabia que não iria acontecer e vi que não era a coisa certa para mim. Foi uma decisão difícil, porque era uma puta oportunidade. Mas estava tentando construir uma carreira como diretor e não queria ser conhecido como ‘o cara que fez o filme ruim dos X-Men’.”
Daí a Marvel Fox vem e o chama para dirigir “X-Men: Primeira Classe”? Tem coisa aí, certo?
Temos, então, um diretor que consegue fazer obras muito divertidas com pouco grana e com frescor. Dessa forma, “X-Men: Primeira Classe” é um filme com poucas cenas de ação e efeitos especiais menos espetaculares. Mas nunca é menos envolvente. Até mais, pois, aqui, nos importamos muito com seus personagens e o perigo parece real.
Além disso, “X-Men” é uma franquia que permite um risco com segurança. Primeiro porque não estamos falando de algo totalmente desconhecido pelo público. A série é notória e só o nome “X-Men” já chama a atenção. A forma como a história é desenvolvida desde sempre já diferencia da de outros personagens da Marvel. Enquanto “Thor”, “Homem de Ferro” e “Homem-Aranha” são personagens marcantes, a força de “X-Men”, por maior que seja o carisma de Wolverine, está no grupo. Dessa forma, as narrativas dos filmes são naturalmente diferenciadas. E o fato de “X-Men” ser um produto híbrido, co-produção da Marvel com a Fox, explica algumas soluções criativas diferentes das do produto Marvel “puro”.
Por mais que Vaughn fale da morte dos filmes de super-heróis, acredito que ele estava muito consciente da importância dos mutantes para o gênero. Posso estar sendo extremamente otimista ao falar isso, mas talvez o seu filme abra os olhos da Marvel Studios para um novo ângulo de narrativa ou ajude a criar uma ideia no público de que os longas de super-heróis ainda podem surpreender. Afinal, a Marvel é uma empresa e como toda grande empresa, vez ou outra, é preciso arriscar. O público muda e se cansa, e apostar eternamente em uma mesma fórmula é um dos grandes erros e razão da morte de muitas empresas.
Enfim, enquanto existir alguém disposto a recriar e reinventar a franquia do “X-Men”, os super-heróis cinematográficos respiram mais aliviados.
ATUALIZAÇÃO 04/06 12:28: O leitor Alexandre Luiz, nos comentários, disse algo de extrema importância que deixei passar na primeira versão do texto. “X-Men: Primeira Classe”é uma co-produção Marvel e Fox e a segunda toma boa parte das decisões. Há algumas correções (e elas estão destacadas) e novas informações no artigo em função disso.
Curtir isso:
Curtir Carregando...