– Primeiro, erga o copo e examine o vinho contra a luz.
“Sideways” funciona em duas esferas: a primeira é a do estudo de personagens, na qual é prazeroso deixar de ler as legendas em alguns momentos só para observar as expressões e gestos de Paul Giamatti e seus colegas de elenco. A outra é a da comédia, onde quem mais brilha é Thomas Haden Church, que rouba a cena diversas vezes.
– Agora, incline. O que você está fazendo é checar a densidade da cor, à medida que o vinho afina na direção da borda. Isso mostra a idade.
Não há nada de mais injusto no Oscar deste ano do que a não indicação de Giamatti como Melhor Ator. Assistam a “Sideways” e depois venham dizer se não tenho razão. Aqui, ele faz seu melhor trabalho, uma interpretação sutil, que pode lembrar o Harvey Pekar de “Anti-Herói Americano”, mas sem os maneirismos daquele personagem, ficando apenas o lado pessimista e ranzinza. Acrescente a isso uma dose de pura sensibilidade, algo que o ator emprega ao aspirante a escritor Miles de uma forma que o torna um cara real, com sentimentos que eu ou você podemos compartilhar com ele.
– Enfie o nariz. Não seja tímido, enfie o nariz pra valer.
“Sideways” pode não agradar tanto quanto os outros indicados ao Oscar, o que é compreensível tendo em vista que ele é direcionado a um público peculiar: homens adultos que já passaram por experiências amorosas frustrantes. Não que as mulheres não possam curtir também (além de ser uma ótima oportunidade para elas observarem o comportamento do sexo oposto).
– Ponha a taça no balcão e deixe entrar o ar. Oxigenar abre o vinho, solta os aromas, os sabores, isso é muito importante.
Confesso que me identifiquei bastante com Miles e, por isso, o que mais gostei foi a análise da depressão pela qual ele passa. Miles diz a Jack que a semana que eles irão passar juntos é para o amigo se divertir, não ele. De fato, é isso que acontece, mas é Miles que vive o momento de maior descoberta interna, enfrentando os próprios demônios que o atormentam desde o fim de seu casamento. A incapacidade de se sentir estimulado a se relacionar novamente, o fracasso profissional que parece cada vez mais provável, tudo derivado do stress emocional que ele vive. Alexander Payne consegue transmitir com a câmera essa constante sensação de desconforto do personagem. Observe, por exemplo, como é filmada a cena em que Miles se senta com os amigos em um restaurante, mas ele só consegue pensar na ex-esposa.
– Cheire de novo.
Se o filme é tão, digamos, introspectivo, por que, então, foi tão elogiado e premiado em tudo quanto é associação de críticos nos EUA? A resposta está exatamente nesta observação tão próxima, que chega a ser pessoal. Assim como Miles nos ensina, “Sideways” deve ser degustado aos poucos. É preciso estudá-lo, pegar os detalhes, as nuanças dos personagens, os diálogos bem colocados, o timing dos atores, os enquadramentos, as aproximações da câmera. Não é um filme para se ver num gole só.
– E quando a gente bebe?
– Agora.
Concordo que o filme possa estar passando por uma superestimação momentânea, ainda mais quando temos um Scorsese e um Eastwood em cartaz ao mesmo tempo, mas não dá para negar que o trabalho de Payne é realmente muito bom. Vale não só a primeira dose, mas a garrafa inteira.
Texto publicado originalmente em 16 de fevereiro de 2005.