O Havaí fica localizado sobre a placa tectônica do Oceano Pacífico e todas as suas ilhas foram formadas a partir do magma que corre por baixo do mar e que até hoje mantém vulcões ativos em alguns pontos do arquipélago. A região é também suscetível a terremotos e tsunamis. “Os Descendentes” se passa inteiramente no Havaí, mas o filme não mostra os desastres que ali já ocorreram ou que podem vir a ocorrer. E nem deveria: a vida de Matt King (George Clooney) já está devastada o bastante.
Na verdade, o diretor e co-roteirista Alexander Payne começa o filme, sim, com a face do desastre: um fade in, um close-up de uma mulher sorridente (Patricia Hastie), um fade out. As três principais informações que temos ali são: o sorriso, o vento no rosto da mulher e o mar, ao fundo, indicando que ela pratica esqui aquático naquele momento e está muito feliz fazendo aquilo. Os fades, no entanto, é que são essenciais para a representação deste breve prólogo para o restante da trama.
A forma como Payne narra o primeiro meio minuto de filme pauta todo o restante do longa-metragem. Ele utiliza uma cartilha bastante básica e cuida para que cada efeito e movimento de câmera não seja desperdiçado. Como é bom ver panorâmicas utilizadas de maneira tão funcional, assim como os chicotes, o zoom e até mesmo a transição em cortina, coisa rara de se ver num filme hoje em dia. A direção de Payne, aqui e em seus filmes anteriores, é linguagem pura usada a favor da narrativa. Ele sabe exatamente onde colocar a câmera. É um cinema simples que refuta o excesso e o modismo e investe em formas mais tradicionais, que são o que o tornam grandioso.
Desde que estourou com “Eleição” (1999) e veio a ser consagrado precocemente com seu quarto longa, “Sideways – Entre Umas e Outras” (2004), Payne tem demonstrado um amadurecimento admirável e invejável a cada filme. Em “Os Descendentes”, ele não só apresenta uma direção consistente como comprova ser discípulo legítimo de James L. Brooks (“Melhor é Impossível”, “Laços de Ternura”, “Nos Bastidores da Notícia”), cineasta que já bebe do cinema do mestre Billy Wilder. Eu falo não apenas da técnica concisa, mas da abordagem humana. Fazendo dramas disfarçados de comédias (o inverso também se aplica), Payne fala de valores também bastante básicos, como respeito, lealdade e dignidade (a recuperação desta, em primeiro lugar) em face a eventos que, sem que se perceba de imediato, ocorrendo sob expressões aparentes, podem desestruturar uma família e desfazer, como num fade, os sentimentos que unem aquelas pessoas em primeiro lugar.
Temos, em “Os Descendentes”, um homem arrasado que quer reconstruir sua família, alguém que deseja tão somente manter suas filhas num mesmo espaço. Ele quer ser um pai – coisa que uma geração ensina à outra. Ao mesmo tempo, ele quer ser um homem com “H” maiúsculo e, para isso, testa até onde vai sua capacidade de tolerar e preservar(-se). Payne não quer falar do desastre, mas das consequências – mais que isso, falar sobre reunir e reerguer.
Um filme simples, elegante, equilibrado e tocante como a boa e velha Hollywood é capaz de fazer quando quer.
OS DESCENDENTES (The Descendants, 2011, EUA). Direção: Alexander Payne. Roteiro: Alexander Payne, Nat Faxon, Jim Rash (baseado no livro de Kaui Hart Hemmings). Fotografia: Phedon Papamichael. Montagem: Kevin Tent. Produção: Alexander Payne, Jim Taylor, Jim Burke. Com: George Clooney, Shailene Woodley, Amara Miller, Nick Krause, Patricia Hastie, Beau Bridges, Michael Ontkean, Robert Forster, Barbara L. Southern, Matthew Lillard, Judy Greer. Estúdio: Ad Hominem Enterprises. Distribuição: 20th Century Fox. 115 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.