Em uma época em que a pedofilia tem ocupado espaço indesejado cada vez maior nos noticiários, um filme como “A Caça” pode causar reações adversas. Apesar de ser propor a ser um drama sobre um homem injustiçado após sofrer a acusação de ter abusado sexualmente de crianças na escola em que trabalha, o filme levanta outras questões.
A mais pungente é sem dúvida a certeza ou incerteza sobre o que diz uma criança. No caso, o diretor dinamarquês Thomas Vinterberg tenta criar uma discussão que pode ser mal interpretada ao colocar como vilã a menina de apenas cinco anos que acusa o protagonista de abusar dela.
A questão é que a criança não é a vilã. Num momento chave, Vinterberg filma a garota na penumbra, com um certo olhar maligno no rosto. É uma postura maniqueísta e desnecessária, que aliás só mostra como o diretor, rebento do Dogma 95, realmente deixou para trás os princípios realistas pregados pelo movimento liderado por ele e Lars von Trier.
Ora, o próprio filme nos mostra que a menina (Annika Wedderkopp) desenvolve a conflituosa relação com o professor motivada por uma confusão criada em sua cabeça, por sentir por ele uma afeição que surge, talvez, da sensação de segurança e proteção que ele transmite mais do que o seu pai (Thomas Bo Larsen, ator fetiche de Vinterberg). Daí, assustada com a rejeição dessa paixão inocente pelo professor, ela cria uma mentira para atingi-lo, algo que, para ela, também é um ato inocente.
E é o que basta sabermos. Ao criar a demonização da criança, Vinterberg exclui o desenvolvimento dessa questão delicada e apoia o filme na defesa do professor, que certamente ganha nossa empatia com a atuação brilhante de Mads Mikkelsen, um dos melhores atores europeus surgidos na última década. Se você se impressionou com ele em “Depois do Casamento”, provavelmente ficará ainda mais tocado desta vez.
Vinterberg ainda cria algumas situações com o único propósito de deixar o espectador sempre um pouco mais revoltado com a tragédia pessoal do professor. A cena com o filho na casa dos pais da menina é de uma leviandade absurda. Não leva a lugar algum. Já a cena do supermercado é muito bem resolvida, e o suspense nos minutos finais do filme é criado na medida certa. É talvez a melhor prova da maturidade que Vinterberg atingiu até aqui.
Não fosse pelo deslizes do diretor, “A Caça” poderia ser uma obra-prima. Mas contenta-se em ser um sólido, aflitivo drama que não deixa de tocar nossas emoções, o que também está de ótimo tamanho. ■
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.