Dizer “eu não te amo mais” requer tanta ou mais coragem quanto para falar o contrário. Em “O Abismo Prateado”, o marido da dentista interpretada Alessandra Negrini demonstra ter uma consciência cruel dessa dificuldade. Tanto é que precisa repeti-la três vezes, quase como um mantra, para ter certeza que a mulher entenda que o relacionamento deles acabou. E é justamente esse período de assimilação, de recuperação de um estado de choque, que o novo filme de Karim Aïnouz, “O Abismo Prateado”, acompanha. É um curto espaço de tempo (o longa quase todo se passa durante uma noite), mas que parece durar uma eternidade.
O filme é um estudo amargo de personagem, em que vamos junto com a jovem madrugada a dentro, perambulando pelo Rio de Janeiro, sem que ela saiba direito o que fazer dali em diante, o que falar para o filho e como entender o que ela possivelmente fez de errado, já que na manhã anterior à separação tudo parecia bem, embora aquele beijo separado pelo frio vidro do box forneça um prenúncio do que virá.
É novamente a história de uma personagem solitária com o coração em apuros, tal como “O Céu de Suely” e “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”, filmes anteriores do diretor (o último realizado em parceria com Marcelo Gomes, de “Cinema, Aspirinas e Urubus” e “Era Uma Vez Eu, Verônica”, também filmes sobre solidão e desilusão). Isso para não citar “Madame Satã”, que tem uma proposta mais biográfica do que a de retratar um momento na vida de alguém, mas que ainda assim possui um protagonista em crise.
Os personagens que a dentista encontra, interpretados por Thiago Martins e a garota Gabi Pereira, também compartilham da solidão e do abandono. Formam uma família disfuncional por um instante e são entregues à própria sorte em seguida. É mais ou menos o que acontece conosco também, nesse encontro tão íntimo que o Aïnouz nos proporciona em seus filmes.
“O Abismo Prateado” é livremente inspirado na música “Olhos nos Olhos”, de Chico Buarque, que está na trilha sonora, misturada a canções-chiclete de rádio e de boate. É mais um aspecto que aproxima o filme dos trabalhos anteriores do diretor, onde ele também usa músicas do cancioneiro popular.
Um filme simples, mas poderoso. ■
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.