Observação: como acontece com a maioria dos meus textos (eu diria que com todo texto crítico, de todos os autores, na verdade), minha recomendação sempre é “ler depois de ver”. Não acredito que eu tenha revelado pontos importantes da história do filme, mas como algumas pessoas parecem ser bem mais sensíveis que outras quanto à definição de spoiler, não custa avisar.
Não deixa de ser curioso que a câmera esteja parada nas duas melhores cenas de “Gravidade”. Na primeira, logo após o primeiro ato, a protagonista simbolicamente se coloca em posição fetal, como se tivesse nascido de novo após o acidente com um satélite que a deixa em apuros na órbita terrestre – uma tragédia igualmente devastadora quanto a que ela vivenciou na Terra e que vai nos contar mais tarde. Na outra, a personagem tenta estabelecer contato com uma estação espacial e Sandra Bullock tem um momento de atuação em que finalmente pode se entregar à emoção, já que, até ali, sua única preocupação era encontrar um lugar seguro para pedir ajuda. É o auge dramático do filme.
Digo que o fato de a câmera estar parada nesses dois momentos é curioso porque o principal elemento do filme que tenho visto ser elogiado é a virtuose da filmagem com a câmera flutuante. Eu sou um grande entusiasta de planos-sequências e acho formidável o que Alfonso Cuarón consegue aqui. Porém, considero que ele foi mais feliz e surpreendente na realização das tomadas longas e elaboradas em “Filhos da Esperança”, onde ele teve que trabalhar com limites, por mais que a computação gráfica possa tê-lo ajudado. É diferente, por exemplo, quando a câmera entra e sai de um carro em movimento, durante uma perigosa perseguição. Por mais que você fique encucado em saber como diabos a câmera passou ali, você está envolvido na ação e a câmera se torna invisível. Já em “Gravidade”, quando a câmera simplesmente atravessa o vidro do capacete da astronauta para assumir seu ponto de vista, saindo em seguida também sem a menor cerimônia, juro que eu praticamente ouvi o som de uma bolha estourando, pois, ali, o efeito de um movimento que vinha soando natural causou o contrário: destacou a artificialidade daquela câmera “impossível”.
Cuarón é habilidoso e seus demais planos-sequências são eficientes – palmas para ele. Mas Stanley Kubrick e Brian De Palma alcançaram resultados estéticos superiores em “2001: Uma Odisseia no Espaço” (1968) e “Missão: Marte” (2000), seja dentro ou fora das espaçonaves. Então, eu realmente não me surpreendi tanto com “Gravidade”, embora tenha gostado do filme e reconheça os seus méritos técnicos e, principalmente, fotográficos. As composições de Emmanuel Lubezki são belíssimas, embora eu tenha a impressão de que o ideal para termos a assustadora noção da imensidão do espaço, ou mesmo termos a sensação de claustrofobia que o filme busca (e não alcança, ao menos no meu caso), seja vê-lo em IMAX – formato em que se poderia fazer uso ainda melhor do 3D, que já é bastante eficaz, mesmo que tenha sido obtido na pós-produção. A opção pela ampla profundidade campo, nas cenas internas e externas, e a aplicação de CGI foram amplamente benéficas nesse sentido.
Cito novamente aquelas que são as duas melhores cenas do filme para falar do aspecto emocional, que é o ponto que realmente me incomodou em “Gravidade”. São dois momentos emblemáticos do tema do filme e são os dois únicos que realmente me conectaram ao drama da protagonista.
Um filme semelhante ao projeto de Cuarón é o independente “Mar Aberto”, de Chris Kentis, lançado há dez anos, que parte do mesmo princípio da sobrevivência e do isolamento, só que é situado em alto mar, com um casal cercado por tubarões após serem deixados para trás pelo grupo que eles acompanhavam. O primeiro contato que temos com os personagens é num quarto, deitados numa cama, seminus. E por mais prosaica que seja a cena, ela humaniza (e fragiliza) aquelas pessoas. Já em “Gravidade”, nós não temos um contato prévio com os personagens. Nós já os conhecemos em pleno trabalho, dentro de suas roupas de astronauta, e, alguns minutos depois, já estamos girando junto a eles pelo espaço vazio, acima da Terra, após o fatídico acidente.
O único contato que temos com a personalidade daquelas pessoas é através de suas conversas, mas a preocupação delas, ali, é trabalhar e, depois, encontrar uma forma de se salvar – e o procedimento acaba sendo tão cerebral quanto as preocupações técnicas de Cuarón na filmagem. E ainda com diálogos superficiais fica um bocado difícil se conectar emocionalmente com aqueles personagens, a não ser pela natural preocupação e o desejo de que a vítima se salve ao testemunharmos uma situação de extremo perigo (a forma de mostrar o desastre é impressionante e, mais uma vez, Cuarón executa a cena para merecidos aplausos, particularmente pelo uso criativo do som, permitindo que só escutemos o que os astronautas escutam).
O distanciamento surge ainda do fato de que a protagonista não está, de forma alguma, sozinha no “silêncio ensurdecedor” do espaço. Ela está acompanhada, primeiro, da câmera onipresente de Cuarón, que inclusive tem a lente atingida por fragmentos e gotas d’água em alguns momentos. Ela também está acompanhada da música de Steven Price, grandiloquente e carregada de acordes emotivos, em alguns momentos até intrusivos, já que servem para compensar a ausência dos efeitos sonoros de explosões, quase jogando fora o interessante conceito do som diegético do designer de som Glenn Freemantle. E ela está, também, sempre acompanhada do colega de trabalho, seja física, mental ou espiritualmente.
Aliás, atrapalha bastante o fato de ele ser George Clooney, que, aqui, não consegue se afastar de sua persona. Ele é o galã piadista do sorriso maroto, só que num traje espacial. E sob o pretexto do alívio cômico, sua aparente experiência de alguém que está prestes a se aposentar acaba diluindo os momentos de tensão, ao ponto de fazer parecer que toda a missão de resgate não passa de uma grande brincadeira ou, no máximo, um exercício num simulador da NASA. O único risco que se corre é o de deixar o espectador num vácuo emocional – e devo dizer que ele quase conseguiu. ■
GRAVIDADE (Gravity, 2013, EUA, Reino Unido). Direção: Alfonso Cuarón; Roteiro: Alfonso Cuarón, Jonás Cuarón; Produção: Alfonso Cuarón, David Heyman; Fotografia: Emmanuel Lubezki; Montagem: Alfonso Cuarón, Mark Sanger; Música: Steven Price; Com: Sandra Bullock, George Clooney, Ed Harris (voz), Orto Ignatiussen (voz), Paul Sharma (voz), Amy Warren (voz), Basher Savage (voz); Estúdios: Warner Bros., Esperanto Filmoj, Heyday Films; Distribuição: Warner Bros. 91 min
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.