Crítica: ELA, de Spike Jonze

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Numa época em que muito alarde se faz em torno de cenas de sexo explícito, é numa tela preta que Spike Jonze “mostra” a transa do protagonista de seu filme com seu interesse amoroso. Ele é vivido por Joaquin Phoenix, cujo rosto nós acompanhamos por praticamente toda a duração do filme, muito como acontece com Adèle Exarchopoulos em “Azul é a Cor Mais Quente”. Já ela é interpretada (com todas as letras) por Scarlett Johansson.

A cena de sexo às escuras tem dupla representatividade. Primeiro, sua aparente inexistência dentro da artificialidade da relação construída por Theodore e Samantha (eles não transaram de fato, ao menos não no sentido físico que a câmera pode captar). Segundo, sua subjetividade, já que a tomada pode ser interpretada como um plano subjetivo do personagem, de olhos fechados, entregue à imaginação.



Ao público, no entanto, a tela dificilmente surgirá vazia, já que as vozes e gemidos dos dois atores preenchem por completo a “visão mental” do espectador com imagens inventadas a partir de seu conhecimento prévio (todos sabem como Scarlett Johansson é) e dentro do que foi construído narrativamente pelo filme até ali.

Jonze também adota esse jogo de sugestões em outras ações de Samantha. É na voz sonolenta de Johansson que você a imagina/vê acordando após ser tirada do “modo de hibernação”, digamos. Da mesma forma, a animação na forma como ela conta suas descobertas a Theodore exibe claramente sua empolgação, entre tantas outras emoções que ela demonstra nas conversas com o companheiro. Até mesmo no momento em que Samantha apresenta a ele um outro sistema operacional, com quem vem estudando filosofia, nós podemos perfeitamente visualizar o rosto dela e o do outro sujeito – tudo, mais uma vez, com o auxílio do nosso conhecimento prévio desse tipo de situação constrangedora, além, é claro, das informações que Phoenix nos passa através de suas expressões faciais e corporais.

O filme acontece em dois lugares ao mesmo tempo. É uma narrativa coletiva que o espectador também constrói em sua mente. O mesmo se aplica quando Samantha se refugia com outros sistemas em algum lugar inacessível ao ser humano. É, este momento, também a síntese do argumento de Jonze: que nós somos seres limitados por nossos sentimentos, que somos seres que tentam limitar outros seres e que, em um nível além da evolução do HAL 9000 de “2001: Uma Odisseia no Espaço”, Samantha é uma criação que veio do homem, do seu egoísmo, e que conseguiu superar seu criador.

O ser humano tenta tanto criar essa vida artificial que consegue criar algo melhor do que ele, algo infinito, ilimitado, e ele mesmo esquece de cuidar de sua própria evolução. É, o homem, dominado não só por toda essa artificialidade, mas por seu próprio complexo de ter sido “criado à imagem e semelhança” de um deus que ele idealiza e antropomorfiza.

Curioso, porém, notar que Jonze não se rende a artifícios que o cinema oferece para a criação visual desse futuro utópico e não tão distante dos dias atuais. Ele encontra soluções muito econômicas e simples para representar Samantha e a tecnologia da época em que o filme se passa. Por exemplo, ele elimina quase por completo a tela do dispositivo e a interface do sistema operacional. Samantha é praticamente uma entidade, é a voz da consciência egoísta de Theodore e ela, paradoxalmente, se torna auto consciente.

“Ela” é, antes de um romance, um filme sobre o ser humano, que reflete sobre sua condição e onde ele se encontra hoje e onde poderá estar no futuro. É, enfim, uma ficção científica, e das melhores que o cinema produziu nos últimos anos. ■

ELA (Her, 2013, EUA). Direção: Spike Jonze; Roteiro: Spike Jonze; Produção: Spike Jonze, Megan Ellison, Vincent Landay; Fotografia: Hoyte Van Hoytema; Montagem: Jeff Buchanan, Eric Zumbrunnen; Música: Arcade Fire; Com: Joaquin Phoenix, Scarlett Johansson, Chris Pratt, Rooney Mara, Amy Adams, Olivia Wilde; Estúdio: Annapurna Pictures; Distribuição: Sony Pictures. 126 min