Um ano sem lançar um filme nos cinemas fez muito bem à Pixar. Após os semitropeços “Carros 2” (história ruim, mas ainda um colírio), “Valente” (conto de fadas um tanto subestimado) e “Universidade Monstros” (que guarda boas piadas), o estúdio de animação volta com tudo com este “Divertida Mente”.
O título brasileiro foi escolhido unicamente para apelo comercial, uma vez que soa até contraditório durante a projeção. Não que o filme não seja divertido, mas ele certamente não foi feito com esse único objetivo.
A protagonista é Riley, uma menina na pré-adolescência que muda de cidade com a família devido ao novo emprego do pai. A premissa é a de que o espectador acompanhe o conflito de emoções dentro da mente da garota enquanto ela sente saudade dos amigos, da antiga escola, do time de hóquei no gelo etc. É uma fase de adaptação que você não precisa ter vivenciado exatamente daquela forma para saber como é difícil, ainda mais naquela idade. Para muita gente, acredito, é a época quando compreendemos pela primeira vez o que é sentir-se triste, pois, antes, esse é um sentimento usado mais para chamar a atenção dos adultos.
Para o filme foram escolhidas cinco emoções básicas, que são antropomorfizadas: Alegria é como uma fada, brilhante e hiperativa; Tristeza é como uma nerd insegura, de moletom e óculos enormes; Nojinho é caracterizada como uma patricinha mimada; Raiva é um executivo engravatado e rabugento; e Medo é esguio, lembra um nervo, conforme descrição do codiretor e corroteirista Pete Docter. As cores de cada personagem também foram escolhidas dentro do que normalmente se associa a cada emoção.
A metáfora para o que acontece dentro da mente humana é perfeita: a razão (uma entidade invisível) tenta organizar tudo como se fosse uma grande empresa, mas quando as emoções não conseguem ser controladas, o sistema inteiro entra em colapso. É o que se percebe no caso da Tristeza, que começa a agir sem saber exatamente como e por que interfere na Alegria de Riley. Racionalmente, nenhum dos personagens consegue explicar a atitude da colega.
A decisão de colocar Alegria e Tristeza como antagonistas é muito inteligente. Não dá para ser alegre o tempo inteiro, e faz parte do amadurecimento de Riley e da própria Alegria entender que a Tristeza tem uma função muito importante para que as outras emoções coexistam. O equilíbrio, no fim, é o que importa. Por mais que uma emoção possa estar no comando da mesa de controle na maior parte do tempo, é necessário que todas interajam para que não haja deficiências que causem, por exemplo, a depressão.
É interessante observar como as emoções dos pais de Riley são caracterizadas, bem como a dos outros personagens na sequência final durante os créditos. No caso do pai, Raiva é o líder e os demais personagens usam seu bigode. Já na mente da mãe, é Tristeza quem está no comando, e ela é fisicamente maior que as outras emoções. Tudo é questão de tempero: uma das emoções comanda, mas trabalha em conjunto com as demais. A que é eleita “chefe” determina o aspecto principal da personalidade. No caso de Riley, é natural que a Alegria seja a primeira mandatária: ela é a primeira emoção a surgir e a detentora do maior número de lembranças nos arquivos da Memória de Longo Prazo. Mas, como Riley está em fase de formação da personalidade, já percebemos que o controle precisa ser dividido com a Tristeza. Se aquele botão da puberdade for acionado numa eventual continuação, aí que é tudo pode mudar mesmo.
Notar também que todas as emoções seguem o gênero da pessoa: são todas homens (no caso do pai) ou mulheres (no caso da mãe). Mas em Riley isso ainda não está decidido. Suspeito que seja um artifício para tornar a interação dos personagens mais dinâmica para o público. Poderia não funcionar se todas fossem homens ou todas fossem mulheres. Eu não iria tão longe ao ponto de levar essa questão para o lado da orientação sexual, mas pode ser interpretado como um modo de representar a fase de transição e indefinição que aquela garota ainda vive. De todo modo, é mais um filme com mulheres protagonistas. São três emoções femininas e duas masculinas. Considerando a caracterização (ou descaracterização) por gênero, a coisa fica ainda mais interessante.
Muito inteligente e imaginativo também como o filme representa as diferentes áreas da mente, como o subconsciente, a “fábrica de sonhos” (que traz ótima referência a “Chinatown” fatalmente perdida na dublagem brasileira), as ilhas de interesses, além da já mencionada Memória de Longo Prazo. E o mais bacana é que por mais que o filme se guie por uma linha racional para representar a mente humana (e no fim das contas um filme sempre é um recorte), ele não é cerebral (sem trocadilho) além da conta. Os elementos são porque são, não precisam de explicações objetivas ou científicas para existirem. E é ótimo quando um filme se permite ter lacunas que o espectador completa por conta própria.
Docter, que a princípio não se mostrava dos melhores diretores da Pixar, assume a posição de um dos principais autores do estúdio com este filme, dada a regularidade e recorrência de temas. Aqui, assim como em “Monstros S.A.” (que praticamente serviu como ensaio para “Divertida Mente”) e “Up – Altas Aventuras” (ah, aquela sequência inicial!), ele fala sobre sonhos e memórias. Seu interesse é sobretudo aquilo que nos torna seres emocionais.
Dito isso, “Divertida Mente” tem uma das cenas mais bonitas e tristes dos filmes da Pixar: um plano aberto no abismo do esquecimento que mostra Alegria ajoelhada e desolada em meio a milhares de memórias descartadas de Riley. O ponto nevrálgico emocional é novamente o fim da infância, tal qual na conclusão de “Toy Story 3”. E no fim dos créditos, os realizadores ainda pedem a suas crianças para não crescerem nunca.
Num escopo mais amplo, os filmes da Pixar, e não apenas os dirigidos por Docter, tratam com recorrência da passagem do tempo, do que temos que deixar para trás. Já mencionei “Toy Story” e cito ainda a cidade parada no tempo de “Carros”, a Terra abandonada de “WALL-E”, os tempos de glória de “Os Incríveis” antes do programa de realocação, o flashback do crítico em “Ratatouille”.
Assim como todos esses elementos, as cenas mais emotivas de “Divertida Mente” também tratam das alegrias de outrora que, inevitavelmente, se tornam nostalgia — essa sensação que sempre vem acompanhada de alguma carga de melancolia. Uma delas, a que apresenta a resolução do conflito entre Alegria e Tristeza, é bastante emblemática para essa questão tão presente nos filmes do estúdio e, claro, em nossas vidas.
Não é à toa que as emoções utilizam justamente um projetor para relembrar as memórias de Riley. ■