Quentin Tarantino é fã declarado de faroestes e, dentre os subgêneros em que esses filmes são classificados, o western spaghetti é aquele pelo qual o diretor é mais fascinado e influenciado. Em vários de seus trabalhos, mesmo aqueles em que foi apenas o roteirista, Tarantino mostra a paixão pelo faroeste italiano de mestres como Sergio Leone e Sergio Corbucci, este último diretor de “Django”, que inspirou “Django Livre”, filme que Tarantino fez antes deste “Os Oito Odiados” — em que finalmente podemos dizer que ele criou o seu próprio gênero de western. Senhoras e senhores, bem-vindos ao Western Royale With Cheese.
“Os Oito Odiados” começa de uma forma diferente de qualquer outra das produções de Tarantino, conhecido pelo uso de músicas inusitadas, movimentos de câmera estilizados, humor politicamente incorreto e cenas violentas. Pela primeira uma hora e meia das quase três da duração final, o que o espectador encontra é um filme de ritmo lento e extremamente carregado de diálogos. As conversas entre os personagens, sim, são bem características dos roteiros de Tarantino, com falas longas, cheias de ironias e palavreado chulo, mas tudo muito bem escrito — e dirigido, pois, sim, Tarantino dirige também os diálogos.
Outro aspecto do cinema do diretor que o espectador encontra em “Os Oito Odiados” é a divisão da história em capítulos. Nos três primeiros, ele apresenta os personagens e não se intimida em gastar todo o tempo que pode para isso. Gradualmente, no entanto, Tarantino vai tornando as coisas mais movimentadas dentro daquela parada em que os personagens estão confinados durante uma forte nevasca. As mentiras que eles contam vão sendo desmascaradas uma a uma e o clima fica cada vez mais tenso, até o primeiro tiro ser disparado.
Daí em diante, o filme é definitivamente tarantinizado. A violência vai tomando conta a ponto de chegar a níveis absurdos, daqueles encontrados em filmes de horror. E o cineasta passa a utilizar todo o seu arsenal de técnicas narrativas, como a troca de pontos de vista para mostrar uma mesma situação. Para os fãs, certamente é um deleite. É quase como se o diretor tivesse feito dois filmes em um, desconstruindo a primeira metade com a segunda (algo, aliás, que lembra um de seus primeiros roteiros, “Um Drink no Inferno”, de 1996, em que ele também atua, mas é dirigido por Robert Rodriguez).
Ainda que seja divertido ver Tarantino sem amarras, fazendo um filme autoindulgente, sarcástico, prolixo e inconsequente, fica uma sensação de mais do mesmo. Claro que é um mesmo muito bom, mas ele vinha numa trajetória mais interessante com “Bastardos Inglórios” e “Django Livre”, filmes em que trabalha temáticas políticas, ainda que a estilização esteja presente. Em “Os Oito Odiados” a discussão política também existe, especialmente em relação racismo, mas que acaba dando lugar a um banho de sangue que é menos interessante.
Ainda assim, o elenco novamente ajuda Tarantino a manter os olhos da plateia grudados na tela. Ele volta a trabalhar com vários atores de seus filmes anteriores, entre eles Tim Roth e Michael Madsen, de “Cães de Aluguel”, Kurt Russell e Zoe Bell, de “À Prova de Morte”, Bruce Dern, de “Django Livre”, e claro, Samuel L. Jackson, que desde “Pulp Fiction” não se mostrava tão à vontade em frente à câmera. Destaque também para Jennifer Jason Leigh, como a prisioneira, em uma atuação debochada e poderosa. E ainda Walton Goggins, que faz o xerife Chris Mannix, disparado o personagem mais engraçado e que incorpora muito bem o estilo Tarantino de ser.
Há dois outros aspectos que conferem um ineditismo bem-vindo a “Os Oito Odiados”. É o primeiro filme em que Tarantino usa trilha sonora original, e não é uma simples trilha, já que foi composta por Ennio Morricone (não por coincidência, além das memoráveis trilhas de faroestes, ele fez a música do horror sci-fi “O Enigma do Outro Mundo”, 1982, de John Carpenter, filme que guarda fortes relações com este trabalho de Tarantino). O outro aspecto é o longa ter sido rodado em 70mm, formato que permite a exploração dos enquadramentos no cenário fechado, utilizando a largura máxima da tela, dentro da qual as relações espaciais entre os personagens são criadas e recriadas.
Justamente por serem novidades, esses são aspectos que carecem de mais estudo e aprofundamento, passadas as primeiras impressões. ■
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.