Diversas análises sobre “Janela Indiscreta” (Rear Window, 1954) já foram feitas ao longo das décadas, em especial destacando a metáfora do voyeurismo: a curiosidade patológica por tudo o que é privado ou íntimo. No filme de Alfred Hitchcock, uma de suas obras-primas, o voyeurismo é colocado como fator que move o cinema. Hitchcock afirma, assim, que somos todos curiosos pela vida dos outros e o cinema nos permite olhar pela janela sem sermos notados. E o espectador se encontra em uma posição muito mais confortável que a do fotógrafo Jeff, vivido por James Stewart. Nós não corremos o risco de os personagens na tela nos flagrarem olhando para eles, embora, assim como o protagonista, que quebrou a perna e está numa cadeira de rodas, o espectador também esteja praticamente imobilizado na poltrona do cinema, sem poder fugir (daí se tira o impacto que a quebra da quarta parede pode causar).
A introdução de “Janela Indiscreta” já diz muito das intenções de Hitchcock. Por duas vezes, em um plano na sequência do outro, ele filma as janelas do prédio vizinho e volta a lente da câmera para dentro do apartamento de Jeff, quando revela que ele está dormindo. Aquele olhar curioso, portanto, não é o do personagem, mas, sim, o do próprio diretor que, por consequência, é quem guia o nosso olhar e satisfaz a nossa curiosidade.
É claro que, narrativamente, a movimentação da câmera nessas primeiras cenas é o meio de apresentar o cenário e o personagem. Mas não sejamos ingênuos a respeito de Hitchcock.
Ainda no início de “Janela Indiscreta”, Stella, a enfermeira que cuida de Jeff (interpretada pela atriz Thelma Ritter), faz uma importante ponderação sobre o tema do filme. Ao flagrar Jeff espionando os vizinhos com o binóculo, ela diz: “Nós nos tornamos uma raça de voyeurs” (no original, “Peeping Toms“), reconhecendo que ela também é curiosa e antecipando sua participação na trama que se desenrola a partir de um suposto crime cometido no prédio da frente. A fala de Stella é similar ao que o próprio Hitchcock viria a dizer, anos mais tarde, em sua famosa e fundamental entrevista a François Truffaut, quando ele concorda que Jeff é um voyeur. Porém o diretor devolve a pergunta ao colega de forma retórica: “Mas não somos todos?”
A questão é relevante e atual, ainda mais neste momento em que vivemos cercados por câmeras e viciados em redes sociais. Para além do cinema, no mundo da internet nós também estamos olhando pela janela, bisbilhotando a vida dos outros, interpretando, especulando e montando, na nossa cabeça, narrativas a partir das imagens a que temos acesso na tela do computador, do tablet ou do smartphone. E aqui novamente devemos voltar a “Hitchcock/Truffaut”, na passagem em que o cineasta exemplifica o Efeito Kuleshov em “Janela Indiscreta”: como frames diferentes posicionados entre outros dois que mostram James Stewart olhando para a janela do vizinho transformam o significado das expressões do ator. Uma rede social, porém, nos leva a realizar um exercício de montagem muito mais complexo que o A+B=C cinematográfico, dada a sua velocidade de transformação, a sua (des)ordenação e os seus vários níveis de interação.
É curioso notar, também, como o comportamento de alguns dos moradores do prédio vizinho de “Janela Indiscreta” é replicado, hoje, pelos usuários do Facebook, do Instagram, do Snapchat ou o que o valha. No filme, as janelas estão abertas, em parte, pela justificativa do forte calor. Mas, na internet, as pessoas que deixam suas janelas abertas para o mundo parecem demonstrar uma vontade ainda mais evidente de se mostrarem e, principalmente, de desejarem ser vistas, algo que deriva da escopofilia. O voyeurismo se torna socialmente aceitável e, assim, nós viramos também uma raça de exibicionistas.
A diferença fundamental é que na internet existem muito mais filtros entre o nosso olhar e a imagem. No cinema, a visão do diretor é a manipulação primordial que interfere na nossa experiência, e ainda assim parte de um consentimento do espectador. Nas redes sociais, no entanto, existem muito mais distorções e recortes, e muitas vezes nós não temos controle sobre esses filtros, como, por exemplo, o algoritmo que define para você o que é mais relevante ver primeiro, seja na timeline do Facebook, seja nos resultados da busca do Google. A manipulação acontece em camadas distintas que buscam níveis de consciência que facilmente se dispersam. Porém, a autorização para que a nossa experiência na internet sofra interferências é a mesma de entrar numa sala de cinema, ou ao menos parte do mesmo princípio: você não está ali porque foi forçado. Você está ali porque quer. ■