De olhos bem abertos para Kubrick

De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut UK/ USA, 1999), dirigido por Stanley Kubrick, começa com uma cena voyeurística em que Alice (vivida por Nicole Kidman) está de costas e se despe, evidenciando a nudez de seu corpo de linhas perfeitas. Mas após alguns minutos de sua beleza exposta, há um corte, a tela fica preta e o título do filme surge. Há aqui uma interrupção brusca, como se nossos olhos estivessem de fato sendo fechados para a cena, não nos é permitido continuar a ver. O prazer é negado pela primeira vez na narrativa.

O visual desse primeiro plano já entrega uma construção calculada, pois nota-se o enquadramento baseado na regra dos terços da composição fotográfica, onde o tema é posicionado em pontos de tensão visual específicos. No caso, Nicole foi posicionada à direita, o ponto mais forte para onde nosso olhos tendem a se direcionar, e à esquerda vemos um espelho, objeto carregado de simbolismos relacionados a identidade e que se repete em vários momentos do filme. As cores que prevalecem nos objetos são o vermelho e o preto, a iluminação é amarelada e quente (dando o tom de intimidade) e o espaço é de um cômodo de estilo clássico, com colunas que lembram a arquitetura grega.

De certa forma, apenas neste prólogo já temos reunidos vários elementos que são características próprias do Kubrick e que compõem todo o filme visualmente e tematicamente. Por exemplo, o máximo de cuidado no enquadramento (fruto de sua experiência como fotógrafo), uso de cores e objetos simbólicos, a provocação e o mistério. O plano aberto que se segue é para mostrar a localização da história, pois trata-se de uma imagem noturna de Nova York. Logo somos apresentados ao personagem de Tom Cruise, Dr. Bill, que se encontra na mesma casa vista anteriormente no prólogo, pois as características do espaço são as mesmas. Nesse momento, inicia-se um plano-sequência em que a câmera percorre o trajeto de Dr. Bill, indo ao encontro de Alice, no banheiro da casa, que só termina quando os dois estão prontos para sair e deixam o quarto. É nessa dinâmica que somos informados de que se trata de um casal, se arrumando para uma festa de gala.



A trilha sonora que complementa esse plano-sequência é feita por uma música clássica, outra característica do diretor. Essa música instrumental de Dmitri Shostakovitch, Valsa 2, ajuda a conceber tal momento como uma rotina conjugal, em que o casal já está habituado a fazer aqueles movimentos, a interagir daquela forma. Todos os sons e músicas do filme, aliás, trazem mais profundidade e sentido às cenas sem serem óbvios ou clichês, outro cuidado típico do cineasta. Interessante observar que mais detalhes subjetivos são adicionados com muita perspicácia, pelo diálogo no banheiro (e pela comunicação não verbal) já é possível interpretar que Dr. Bill não repara em sua esposa tanto quanto ela gostaria. O filme se desenvolve a partir da festa de gala, uma espécie de jantar de final de ano em que o casal Alice e Dr. Bill são convidados. Apesar de casados, os dois se separam e vemos ambos em situações que estamos acostumados a atribuir somente a pessoas solteiras, pois eles são seduzidos por terceiros e se mostram pouco resistentes a isso.

O clima de mistério e sedução é muito bem construído por Kubrick, que nunca deixa nada explícito e vai entregando informações aos poucos. Quando o casal volta para casa, fumam maconha juntos, num momento de intimidade e muita sensualidade, mas começam uma discussão sobre o relacionamento de nove anos, que é o ponto principal de ruptura da rotina deles e que vai desencadear numa espécie de jornada para Dr. Bill. Nessa discussão, Alice desabafa e traz à tona fantasias reprimidas jamais imaginadas pelo seu marido. Tal qual “Alice no País das Maravilhas”, a Alice de Kubrick se encontra num momento de descoberta de si mesma e por isso em vários momentos do filme sua imagem é refletida em espelhos. Numa dessas imagens, inclusive, há o foco no olhar de Alice, o que remete a outros olhares de outros personagens icônicos de Kubrick, como Alex DeLarge, de Laranja Mecânica (A Clockwork Orange UK/USA 1971), e Jack Torrance, de O Iluminado (The Shining UK/USA 1980). Seria o olhar da mulher tão ameaçador para o homem quanto estes outros personagens perturbados e violentos são para todos?

O marido de Alice, acostumado a pensar na esposa como alguém que ele conhece completamente, se vê transtornado ao ter que que lidar com a informação de que ela tem outros desejos e que a estabilidade do relacionamento dos dois não é uma certeza. Aqui também se tem o foco na sua expressão de perturbação, um instante de profunda subjetividade do personagem, que Kubrick capta com muita força e drama através do uso do primeiro plano. Essa perturbação do personagem lhe consome de tal modo que sua imaginação passa a criar imagens de uma possível traição de sua mulher. E ele perambula pela cidade, descobrindo fugas reais e/ou imaginárias. Kubrick usa a hipnótica iluminação das luzes de Natal, que dá um tom onírico a tudo que vemos acontecer. Tais luzes só não estão presentes no evento secreto descoberto por Dr. Bill em que acontecem orgias de uma elite mascarada, onde o que prevalece é o mistério, a tensão e uma aura de surrealismo, reforçados pela trilha sonora exótica e os travellings pelo salão.

Ao longo da obra, vemos muitas questões sendo apontadas por Kubrick sobre moral, casamento, fidelidade, a repressão de desejos – em especial o feminino –  os contrapontos entre os papéis sociais do homem e da mulher, as máscaras que vestimos para a interação e aceitação na sociedade, realidade e fantasia, perversões da elite…. Interessante notar como as pulsões de vida e de morte da psicanálise estão presentes. Há sempre o contraste de luz azul versus luz vermelha, detalhes em vermelho vivo, remetendo a paixão, luxúria, e detalhes em preto, que remete ao obscuro, o contraste de corpos ativos para o sexo versus corpos desfalecidos, o contraste de imagens que remetem ao sagrado, como cartão de Natal com anjos, ao lado de objetos que remetem ao profano, como calcinhas. Também o contraste entre a tradição e o moderno: os espaços internos de arquitetura clássica versus as ruas de Nova York. Essa ideia de oposição também está na própria narrativa, que sempre interrompe as possibilidades de prazer dos personagens (algo que acontece também, como já dito, com nosso próprio voyeurismo na primeira cena do filme). Tudo isso pode representar simbolicamente as forças opostas que habitam o ser humano, polaridades que são os cernes dos conflitos psíquicos.

Os símbolos são constantes e estão presentes em muitos outros objetos e figuras como o arco-íris, a estrela de Ishtar que decora uma casa etc. O manejo de simbolismos é algo muito presente na carreira de Kubrick e aqui não é diferente. “De Olhos Bem Fechados” é o último filme que Stanley Kubrick nos deixou. E como todos os outros de sua carreira, não se esgota na primeira vez em que assistimos. A cada nova experiência de assisti-lo, surgem mais descobertas e mais interpretações. A maestria e genialidade de Kubrick são perceptíveis do início ao fim e isso só é possível porque, como artista, ele se dedicou a fazer do Cinema sua expressão pessoal. E através do pessoal, ele consegue nos tocar coletivamente, pois seus filmes abordam, de uma forma ou de outra, conflitos e buscas humanas. Mas, claro, é preciso estar de olhos bem atentos para ver e sentir.