Uma jovem recém-chegada à Polícia quer provar seu valor diante dos colegas com mais tempo de serviço e investigar um caso importante que envolve corrupção e políticos da cidade. A sinopse poderia ser do longa brasileiro “Operações Especiais”, estrelado por Cléo Pires no ano passado, ou da produção hollywoodiana “Sicário – Terra de Ninguém”, protagonizada por Emily Blunt. Mas eu estou falando de uma animação da Disney: “Zootopia – Essa Cidade é o Bicho”.
Como o título já indica, a trama se passa em uma metrópole habitada por mamíferos, onde a sociedade animal teria evoluído ao ponto de diferentes espécies conseguirem conviver em harmonia, não importando o tamanho ou a posição que ocupam na cadeia alimentar. A personagem principal é a coelha Judy (dublada na versão original por Ginnifer Goodwin), que desde a infância estava determinada a se tornar policial, mesmo a contragosto dos pais, preocupados com sua segurança. Pronta para realizar seu sonho, ela chega ao Departamento de Polícia de Zootopia, mas, além dos crimes, ela tem que enfrentar a desconfiança dos outros policiais e de seu superior, todos eles brutamontes. Inicialmente delegada à função de guarda de trânsito, a pernalta Judy não se faz de rogada e logo se dispõe a investigar o desaparecimento de uma lontra, que pode estar relacionado ao misterioso sumiço de outros animais.
Além de ter uma intrigante e surpreendente trama policial, “Zootopia” se sai como uma formidável fábula sobre o preconceito. O título e o nome da cidade funcionam como metáfora perfeita para a constatação de que, na nossa sociedade, nos deparamos, no dia-a-dia, com o mesmo problema enfrentado por Judy, e em todas as esferas: na escola, no trabalho, na política, em nossas casas. É triste pensar que a igualdade ainda seja uma utopia. O lema da cidade, “Um lugar onde qualquer um pode ser o que quiser”, encontra ressonância em ideais governistas que sabemos que são bonitos no discurso, mas que, na prática… Bom, em muitos casos sequer são colocados em prática.
Mas mesmo falando de algo ruim, “Zootopia” não deixa de lado o bom humor habitual das produções da Disney. A sátira é usada para criar cenas engraçadíssimas, como aquela em que a “nudez” dos animais se torna mote para uma piada metalinguística com as próprias animações da Disney com animais falantes, ou aquela que se passa em um departamento de trânsito onde os funcionários são bichos-preguiça. Além da comicidade da situação, essa última é uma cena que, além de estar relacionada ao tema principal da categorização e estereotipização social, também critica a burocracia que todos nós já tivemos ou teremos que enfrentar um dia. O mesmo se aplica (mas com formidável efeito dramático) aos perigos do que se diz na imprensa e como a mídia trata a informação em casos de grande repercussão.
Aliás, por falar em departamento de trânsito, os realizadores do filme também mostram não serem isentos de preconceito, visto que a função de guarda de trânsito é tratada como sendo de menor importância. Mas cabe uma ponderação neste comentário e uma breve digressão. Eu entendo que que o objetivo tenha sido mostrar que Judy é ambiciosa e quer fazer mais do que dar multas, e entendo que os próprios policiais possam rejeitar a função (e aí diversos fatores precisam ser levados em conta, principalmente a baixa remuneração e as condições insalubres de trabalho), mas me parece que escapa a muitas pessoas que esse e outros trabalhos considerados “menores” possuem grande importância para o funcionamento de uma cidade e que alguém precisa fazê-los. A questão não é natureza do trabalho, mas o poder público dar a devida valorização.
Com direção de Rich Moore, de “Detona Ralph”, e Byron Howard, de “Bolt: Supercão” e “Enrolados”, e codireção do estreante Jared Bush, “Zootopia” prova mais uma vez o belo trabalho que John Lasseter, um dos fundadores da Pixar, fez ao reerguer o departamento de animação da Disney desde que foi contratado como chefe de criação do estúdio, em 2007. Lá, ele também reuniu um time de cineastas e animadores talentosos (que incluem ainda Jennifer Lee, de “Frozen”, e Chris Willians, de “Operação Big Hero” e também de “Bolt”, entre outros) e deu a eles liberdade para criar e prazer para trabalhar. Deu tão certo que a própria Pixar não tem conseguido manter qualidade tão regular quanto as animações da Disney nos últimos anos. Está aí também uma história de superação e reconhecimento que encontra paralelos com “Zootopia”: adquirimos o hábito de colocar os cineastas da Pixar num pedestal de autores, sendo que na sala ao lado tem uma turma muito boa de serviço que a gente sequer lembra o nome. ■
Editor-chefe e criador do Cinematório. Jornalista profissional, mestre em Cinema pela Escola de Belas Artes da UFMG e crítico filiado à Abraccine (Associação Brasileira de Críticos de Cinema) e à Fipresci (Federação Internacional de Críticos de Cinema). Também integra a equipe de Jornalismo da Rádio Inconfidência, onde apresenta semanalmente o programa Cinefonia. Votante internacional do Globo de Ouro.