[Aviso: este texto contém spoilers.]
A intenção da Marvel em sacudir a continuidade de seus filmes é coerente, uma vez que o estúdio, desde o primeiro filme do Homem de Ferro, lá em 2008, se propõe a construir uma franquia de filmes e seriados de TV interligados, em que os eventos de uma história afetam a próxima, com maior ou menor efeito. No caso de “Capitão América: Guerra Civil” (Captain America: Civil War, 2016), as consequências deverão ser imensas.
Isso é algo que o filme anterior do personagem, “Capitão América: O Soldado Invernal”, já havia feito, com o desmantelamento da S.H.I.E.L.D. repercutindo em diversas instâncias. Aquela trama, na verdade, foi apenas o primeiro passo para que o acompanhamos aqui. Não há mais um arqui-inimigo a ser combatido, embora dois vilões arquetípicos estejam no filme (Rumlow/Ossos Cruzados, vivido por Frank Grillo, e Coronel Zemo, papel de Daniel Brühl). Os verdadeiros rivais são os próprios heróis. Se primeiro foi a corporação que implodiu, agora é a família.
Por “guerra civil”, entende-se um conflito armado entre pessoas de uma mesma sociedade. Os exemplos na história da humanidade são vários. Nas histórias em quadrinhos da Marvel, o episódio que inspirou este terceiro filme do Capitão América rendeu um arco (escrito por Mark Millar e publicado entre 2006 e 2007) que teve efeitos consideráveis na sequência das tramas individuais de cada herói, não apenas do supersoldado Steve Rogers. O mesmo está sendo desenhado para o Universo Marvel no cinema (com as devidas alterações, é claro, já que cada mídia tem sua própria versão dos personagens).
À exceção de Thor e Hulk, todos os Vingadores estão de volta em “Guerra Civil”, e o que justifica o nome do Capitão América estar no título é o fato de ele ser o protagonista, ou seja, é ele quem promove os acontecimentos da trama, sendo o Homem de Ferro o seu antagonista. Dependendo da forma como a história é narrada, esses papéis podem se inverter. Mas o fato é que o ponto de vista aqui é o de Rogers (novamente vivido por Chris Evans). É ele quem conduz a narrativa, já que o conflito se desenvolve devido à sua oposição à determinação governamental para que as atividades dos super-heróis sejam controladas.
Tony Stark (mais uma vez interpretado por Robert Downey Jr.) é a principal voz a favor da medida chancelada por uma centena de países e pela ONU, logo, é ele quem Rogers terá que enfrentar para defender a sua liberdade e a dos demais colegas. Liberdade essa baseada em um conceito muito básico, que o próprio Capitão utiliza enquanto argumenta contra a ordem de controle dada pelo General Ross (William Hurt, voltando ao papel de “O Incrível Hulk”) : garantir o direito de escolha.
Não que Stark esteja totalmente equivocado em sua visão dos fatos: novamente, trata-se de um embate de pontos de vista, em primeiro lugar. E esse entrave evolui para a chamada “guerra civil” (termo adotado pela Marvel como hipérbole, obviamente) por ser uma luta entre irmãos — não irmãos de sangue, mas dentro do princípio esquecido da fraternidade, que, para além da associação religiosa comumente feita, deve ser entendido como conceito dentro dos preceitos políticos e civis e como de fundamental importância para o modo como se interpreta os conceitos correlatos de liberdade e igualdade na construção da justiça.
Não é apenas Rogers contra Stark neste caso, pois os demais irmãos de ambos também se veem envolvidos no conflito, cada um defendendo seu lado e todos motivados por ligações mais íntimas e pessoais. Afinal, Rhodey/Máquina de Guerra (papel de Don Cheadle) é um irmão para Stark assim como Bucky/Soldado Invernal (personagem de Sebastian Stan) é um irmão para Rogers, que ainda tem Sam Wilson/Falcão (interpretado por Anthony Mackie) ao seu lado. Mas há também Natasha/Viúva Negra (Scarlett Johansson) e Clint/Gavião Arqueiro (Jeremy Renner) como quase irmãos e que estão em lados opostos (chegam a dizer um para o outro durante uma briga: “Ainda somos amigos, certo?”). O único laço sanguíneo no grupo já não existe mais, posto que Wanda/Feiticeira Escarlate (vivida por Elizabeth Olsen) perdeu o seu irmão (gêmeo) em “Vingadores: Era de Ultron“.
Há de se considerar, ainda, que, nesta “guerra civil”, os Vingadores não são exatamente civis. Primeiro porque são super-humanos, o que já os diferencia de nós, meros mortais, embora a maioria deles tenha surgido do seio da nossa sociedade e se transformado em “super” por circunstâncias variadas. Além disso, os Vingadores são claramente uma força especial privada, mas com ligações governamentais. Trata-se, portanto, de um confronto praticamente corporativo. Onde estão os civis de verdade, então, nessa história toda?
Fato é que, na tela, eles são as vítimas, mas não tomam parte do confronto. Fora da tela, no entanto, os civis são a plateia e é aqui que eles devem se posicionar. A guerra do filme é entre os super-heróis, mas a guerra da vida sempre foi entre nós mesmos, acontece todos os dias, sendo mais latente em determinadas épocas, situações e lugares, por motivos políticos, raciais, religiosos, entre outros, e que podem levar de fato a um chamado às armas.
O que o filme trata alegoricamente e muito bem, fazendo uma alusão à nossa sociedade, é a noção da vilania incutida em determinados discursos que as pessoas (assim como Stark) costumam adotar como “o que é melhor para todos”, sem qualquer atitude de empatia e passando por cima de direitos sociais e constitucionais de acordo com o que lhes convém.
Se a família dos Vingadores tem sua estrutura abalada por conta de ideologias divergentes entre eles, há de se incluir aí outro fator determinante para alimentar as tensões entre os dois heróis principais do enredo. Este também é um filme sobre a dor causada pela perda repentina dos pais na juventude, algo que pautou as motivações do Bruce Wayne de “Batman vs. Superman: A Origem da Justiça“. A perda também é essencial para a conduta de Stark, como fica claro em sua introdução no filme. E nos dois longas fica claro (mas em “Guerra Civil” mais bem organizado narrativamente) que esta não é mais uma questão de ideologia ou de justiça: é pessoal e intangível.
É particularmente curioso observar como esse movimento se dá em direções opostas em cada filme: enquanto Batman e Superman partem para o confronto, primeiro, em razão de suas posições políticas, unindo-se em seguida pela questão pessoal, Capitão América e Homem de Ferro decidem se reconciliar pela questão política, mas, imediatamente depois, são separados novamente pela questão pessoal. Creio que aí o debate passa a ser mais filosófico e psicológico do que político (sendo assim, pode e deve ser mais bem explorado em outro texto).
É claro que seria ótimo que o mesmo tempo dedicado às (excelentes) cenas de ação do longa também fosse destinado a essas reflexões na tela, mas, ainda que feitas en passant (“de passagem”), são elas que, finalmente, tornam os heróis da Marvel no cinema tridimensionais e complexos, após filmes e mais filmes em que as coisas sempre foram muito preto e branco, o bem contra o mal, tudo muito determinado e, não à toa, igual, sempre mais do mesmo. Em “Guerra Civil”, o quadro muda, pois os conflitos pessoais e ideológicos colocam em xeque tudo aquilo em que os heróis acreditavam e os jogam em uma zona cinzenta. Por sinal, em boa parte do filme, os Vingadores nem mesmo usam seus uniformes ou armaduras, o que colabora para torná-los mais humanos, fazendo uso de seus poderes só quando realmente precisam.
Daí é de grande importância a pontualidade e a síntese no uso que os diretores (e irmãos!) Anthony e Joe Russo fazem de cada um dos heróis, sem fazer com que suas participações soem gratuitas. Por isso “Guerra Civil” não é apenas o melhor filme do Capitão América: é também o melhor filme do Homem de Ferro, do Homem-Formiga, dos Vingadores e, também, do Homem-Aranha, que em sua terceira encarnação cinematográfica (agora na pele de Tom Holland) é introduzido na história e no universo dos Vingadores de maneira orgânica, sem que sua aparição seja apenas ser uma deixa para a próxima aventura (e não por acaso, o fato de ter perdido os pais, como Tony Stark, os torna ainda mais próximos e semelhantes).
O mesmo pode ser dito a respeito do Pantera Negra, que também ganhará seu próprio filme, mas que é apresentado aqui como peça fundamental para a trama, do início ao fim. Ele não marca presença apenas, ele toma parte, está entre os beligerantes (afinal, e não por coincidência, é outro que perdeu o pai). E, de novo, os produtores acertaram no casting, com Chadwick Boseman imprimindo ao personagem uma presença ameaçadora, mas ao mesmo tempo detentora da nobreza de um verdadeiro rei.
Aliás, num filme com um Pantera Negra e uma Scarlett Johansson de penteado setentista em ação, o tom cru, brutal e granuloso das sequências de luta são um espetáculo a parte e coerentes com a aspereza das inspirações dos irmãos Russo. Eles, que já haviam mirado os thrillers de espionagem para “Capitão América: Soldado Invernal”, usam o melhor da escola Bourne na elaboração das cenas, habilmente coreografadas por James Young (que também trabalhou em “Soldado Invernal”) e tendo Chad Stahelski e David Leitch (de “John Wick: De Volta ao Jogo”) no time de diretores de segunda unidade. Garantem, assim, muita briga mano a mano e em solo (a Viúva Negra tem uma cena em particular formidável, na sequência que se passa na Nigéria), mas sem abrir mão das hipérboles no parkour durante as perseguições.
A grandiloquência fica reservada ao set piece da batalha no aeroporto, que coloca os heróis usando todos os seus poderes. É claro que, em comparação com os quadrinhos, onde dezenas de heróis se enfrentam para um efeito estético que cabe tão bem ao nanquim, na tela a luta entre uma dúzia de personagens não toma proporções correspondentes as de uma verdadeira guerra e nem se mostra graficamente tão imponente quanto nas ilustrações de Steven McNiven para a HQ que inspira o filme ou mesmo na arte conceitual ilustrada acima.
Existe uma diferença entre a contemplação feita pelo leitor e a feita pelo espectador. E o cinema hollywoodiano, especialmente o de ação, fatalmente não permitirá ao nosso olhar ter o mesmo objetivo. Acredito que Joss Whedon buscou mais essa grandiosidade da imagem própria dos quadrinhos, e foi bem-sucedido, nos dois “Vingadores”; porém, deve-se dar crédito à bela referência visual em “Guerra Civil” que reconstitui a icônica capa que mostra Capitão e Homem de Ferro medindo forças frente a frente.
De todo modo, os Russo conseguem — de novo junto com a mesma equipe de “Soldado Invernal”, na fotografia (Trent Opaloch) e na montagem (Jeffrey Ford e Matthew Schmidt) — explorar muito bem as possibilidades e adequá-las ao estilo mais pé no chão que eles vêm construindo, já que não querem se afastar dos temas que dialogam com a nossa realidade (em especial o intervencionismo na política externa e a questão militar, que tem Bucky no papel do soldado traumatizado e perturbado pelos horrores da guerra).
Por fim, vale destacar bom humor pontual e bem dosado que não deixa “Guerra Civil” se tornar um filme aborrecido e excessivamente sombrio como o “Batman vs. Superman” de Zack Snyder. Também repetindo parceria com os roteiristas Christopher Markus e Stephen McFeely, os Russo exploram bem a “brodagem” entre os heróis, trabalhando o alívio cômico em cima de coisas simples e básicas, como na cena do beijo entre Rogers e Sharon (novamente papel de Emily VanCamp), quando o Capitão olha timidamente para os amigos que aguardam dentro do carro e eles retribuem com um sorriso insinuante. A contumaz ironia nas falas de Stark, injetada na ingenuidade de Peter Parker, também colabora para trazer a bem-vinda comicidade que se espera desses dois personagens.
Num momento em que a onda dos filmes de super-heróis parecia estar levando a Marvel para a ressaca, “Capitão América: Guerra Civil” provoca uma necessária mudança de curso, justo quando a franquia mira o infinito. ■