“Brasil S/A” chegou ao circuito comercial no último dia 11/08, praticamente dois anos após ter ganhado cinco troféus no Festival de Brasília (Direção, Roteiro, Montagem, Som e Trilha Sonora). Escrito e dirigido por Marcelo Pedroso (do inventivo “Pacific”, documentário sobre um cruzeiro marítimo com destino a Fernando de Noronha, composto por filmagens feitas pelos próprios passageiros da viagem), “Brasil S/A” passou por diversas transformações e significações, desde a sua concepção até o recente lançamento.
É um fenômeno curioso que coloca o filme de Pedroso junto a outros dois documentários que têm o mesmo efeito de se atualizarem à luz das inesperadas, repentinas e ainda incertas mudanças que o cenário político-econômico do país atravessa desde 2013. Os outros dois filmes a que me refiro são “Um Dia na Vida” (2010), de Eduardo Coutinho (inteiramente formado por trechos de programas de TV gravados por Coutinho em 2009 e que, vistos hoje, ganham novos sentidos, novas reações por parte do espectador), e “Futuro Junho” (2015), de Maria Augusta Ramos, que, a exemplo de “Brasil S/A”, também chegou ao circuito comercial recentemente, mas foi realizado dois anos atrás, no início da Copa do Mundo de 2014. Nos três casos, nós estamos diante de imagens concebidas em um passado muito próximo e que hoje, em face dos desdobramentos da crise financeira e institucional do país, servem como comentário ainda mais pungente sobre a nossa realidade. “O Futebol”, de Sérgio Oksman, também se encaixaria nesse espectro.
Eu tive a chance de entrevistar Pedroso para o Cinefonia, na Rádio Inconfidência, e ele falou sobre esse processo de atualização quase que involuntária que “Brasil S/A” sofreu, além de outros aspectos do filme, como a trilha sonora que substitui os diálogos. Abaixo, você lê a conversa na íntegra (já que no programa não tivemos tempo para rodar tudo — transcrição por Raquel Gomes).
Marcelo, eu gostaria que você começasse falando da trajetória muito interessante do seu filme, principalmente em relação ao significado que ele acabou ganhando, desde o momento em que ele foi idealizado até esta ocasião do lançamento, que ocorre dois anos após a premiação no Festival de Brasília, em 2014.
Sim. O filme surgiu num momento de muito otimismo no Brasil, de uma euforia, uma certa promessa, uma certa sensação de bem estar social, o Brasil crescendo economicamente, um milhão de pessoas saindo da linha de pobreza, uma situação de pleno emprego, economia galopante, a sétima maior do mundo… E ele [o filme] está sendo lançado agora num momento de derrocada, num momento em que o Brasil está vivendo uma crise institucional fortíssima, o país está em convulsão, há forças políticas tensionando por todos os lados e existe um pessimismo generalizado. É como se fossem dois lados de uma moeda e o filme curiosamente transitou entre isso tudo. Então, ele surge como uma crítica a um ideário de progresso, um ideal de pretenso desenvolvimento. E eu achava que isso no fim era, meio que… Se não equivocado, ao menos correspondia muito mais a um delírio de uma identidade nacional do que qualquer outra coisa. E agora ele também está sendo lançado no momento em que o outro lado se revela, toda essa crise. As leituras dele são muitas possíveis, dependendo de que momento você olha, de quem você seja, você vai ver coisas muito distintas.
Sim. E a imagem da bandeira brasileira sem o círculo central, que surge em determinado momento do filme, acho que foi a que mais me surpreendeu pela atualidade que ela ganhou, se levarmos em conta como é o símbolo oficial do governo do Michel Temer.
Exatamente. Essa imagem é o seguinte (para mim, o que ela representa para mim): muita gente dizia, “ah, achei meio bobo você tirar o Ordem e Progresso, é um ataque muito bobo ao país e tal”. Para mim, nunca foi isso. Para mim, era entender o seguinte: a bandeira do Brasil é toda simbólica, o verde das matas, o amarelo do ouro, o azul do céu… Então, eu queria era tirar esse azul do céu para, filmando de baixo, fazer com que o céu de verdade penetrasse na bandeira, ou seja, substituir o caráter simbólico pelo real. É quase astrológico isso.
A leitura que eu faço do Brasil é que ele está sempre vocacionado a encontrar no futuro uma promessa de um país grande. A gente sempre foi esse país que ia ser um enorme Portugal, ou que ia ser o país do futuro, parece que a gente está sempre esperando que algum dia a gente vai deixar de ser subdesenvolvido, pobre, estigmatizado e se torne uma grande nação. Naquele momento de extremo otimismo nacional, essa imagem ela queria dizer isso: “Chegamos! Somos astronautas, chegamos na lua! Conquistamos o Everest! Fincamos a bandeira do Brasil no ponto culminante da cidade. E a prova de que nós chegamos é isso, que esse céu que era só uma promessa simbólica, a gente olha pra ele hoje e vê esse céu.”
Só que aí entra o Sol e tem um eclipse, e aí vem a sombra. E aí eu acho que é a sombra que estamos vivendo hoje. É o outro lado, o lado de que essa construção faz parte de um delírio coletivo, ligado ao nosso imaginário nacional, a uma síndrome de país de terceiro mundo, estigmatizado, que quer sempre ser maior do que é de fato, que se sente sempre injustiçado, não admite que um estrangeiro fale mal do Brasil, mas somos os primeiros a falar mal do Brasil. Enfim, toda uma conjuntura simbólica e alegórica, que eu enxergava ali. Mas era, principalmente, talvez, entender esse momento, que estamos vivendo ou achando que estamos vivendo aquilo que supostamente acreditamos que éramos predestinados, a ser esse país, “o gigante acordou”, a oitava maior economia do mundo, um país com crescimento exponencial, tudo aquilo que estávamos vivendo naquela época e que agora, curiosamente ou não, parece que tem um reverso aí e a gente está vivendo outro período. E agora eu entendo porque havia um eclipse nessa cena final do filme, porque havia sombra. Porque é isso, essa promessa tem outro lado.
Além dessa imagem que é muito forte, há outras ali no filme que são também muito imponentes. Eu queria que você falasse um pouco sobre como você concebeu essas imagens dentro dessa intenção de ironizar imagens oficiais do governo, imagens institucionais.
Sim. Eu concebi o filme como um processo de fabulação do país pensando sobre si mesmo. A fabulação é um recurso do documentário que em geral é quando um sujeito, uma pessoa começa a criar lendas, começa a criar histórias, começa a criar narrativas mais ou menos fantasiosas, mas que diz respeito a seu imaginário, a quem ele é, às vezes inconscientemente e tal. Eu pensei nisso, como é que podemos fazer uma fabulação do país? Teria que ser acessando meu próprio inconsciente, que é um inconsciente coletivo, esse desejo de grandeza, saber sua vocação para o sucesso, essa promessa de redenção num futuro, o sonho do Eldorado, de um país que era verdejante e abundante em riquezas…
Tudo isso faz parte desse inconsciente. Então trabalhar com as imagens oficiais é tipo assim, você pega uma propaganda da Petrobras, por exemplo, e você vê lá petróleo jorrando, os operários felizes, essa ideia de conquista, de realização, de sucesso, da maior empresa brasileira… Então, o filme fagocita, ele antropofagiza uma propaganda da Petrobras, uma propaganda de carro, uma propaganda do governo, uma campanha política, toda essa maquiagem que a gente coloca na realidade para dizer que ela é melhor do que ela é de fato, é isso que o filme faz.
Então, é o país fabulando, pensando em si mesmo, sonhando em como ele gostaria de ser. Sonhando em ser esse país grande, de sucesso, e é nesse sentido que entram as imagens oficiais porque elas são sempre essa promessa, que na verdade esconde quem somos de fato, mas revela quem queremos ser. Esse é o princípio da fabulação, que está em documentário, tem em Jean Rouch, é essa linha tênue entre a realidade e imaginação, o desejo, a fantasia, as condições reais e materiais, físicas em que existe isso.
E essas imagens são acompanhadas pela música soberba composta pelo Mateus Alves e que supre qualquer necessidade de falas. O filme não tem diálogos. Eu queria que você falasse um pouco da trilha sonora.
A trilha, ela tem um caráter épico. Ela é a narradora do filme. Ela é a personagem que guia a narrativa, que não é totalmente uma narrativa, mas esse caráter apoteótico da trilha confere esse caráter épico de comentadora. Ela está sempre engrandecendo, explodindo… A referência era Tchaikovsky. Coisas assim que remetem a uma cultura eurocêntrica, colonial, colonizada, nosso caráter colonizado, para fazer explodir esse desejo de grandeza porque, veja, essa grandeza vem muito dessa colonização também, né? Então, é uma música orquestrada, baseada em música clássica, mas que está sempre jogando para cima, está sempre compensando talvez até essa falta de diálogos. As pessoas não estão muito acostumadas a ver filmes sem diálogos, então a trilha tem que vir e os sons também.
Os sons que foram criados eu considero também uma espécie de trilha musical, mas não com elementos que a gente costuma conceber como musicais, mas são elementos sonoros que têm tons, timbres, melodias e harmonias. Mas a música está sempre vindo para jogar para cima, para impulsionar e para gritar.
Tem uma máxima no cinema que diz que “a trilha boa é aquela que a gente não percebe”. No “Brasil S/A” é o contrário: a trilha seria boa se ela gritasse, se dissesse, “estou aqui e vou mostrar pra vocês o que é, o que essas imagens querem, para onde elas querem nos levar”. Então, é uma trilha realmente muito especial. Mateus teve um mês para compor acho que 40 minutos de trilha, quase dois terços do filme é com trilha sonora, e foi um trabalho titânico.
Para fecharmos a conversa, em relação ao “Pacific”, seu trabalho anterior ao “Brasil S/A”, a gente percebe uma mudança muito grande em relação à estética do filme, pela forma como as imagens chegam até a gente, porque no “Pacific” foram os passageiros daquele cruzeiro marítimo que filmaram a viagem toda e o que acontecia na embarcação. E aqui, no “Brasil S/A”, a gente tem você no controle das imagens. Apesar disso, eu reconheço nos dois filmes um tema em comum que é como o brasileiro reage a essas mudanças do país, às mudanças econômicas principalmente. Eu queria que você comentasse um pouco dessa diferença entre os dois filmes, mas ao mesmo tempo filmes que mantém esse algo em comum.
Acho que esse algo em comum é um pouco a dimensão humana. O que é felicidade no “Pacific”? O que é ser feliz? É ir para um cruzeiro, estar de férias, poder relaxar, esquecer o trabalho, poder desfrutar de um cardápio infinito, de um bar que não seca nunca, poder gozar daquilo é o máximo. A questão é que essas férias no “Pacific” acabam criando também um imperativo da felicidade. Você tem que relaxar, você tem que gozar desse momento, você tem que aproveitar ao máximo isso, você tem que mostrar a todo mundo que você está feliz, produzir imagens sobre isso, dessas suas férias que você lutou tanto por elas. Você está buscando essa felicidade, mas ela também está sendo imposta. Porque é o mecanismo do capitalismo. O capitalismo não reprime só proibindo. Ele também reprime impondo pra gente um gozo, a gente precisa desfrutar disso dessa forma.
Acho que “Brasil S/A” também fala dessa dimensão humana, de nossos deveres como nação, de como nós nos reconhecemos nos símbolos pátrios, essas milhares de pessoas que foram às ruas com a camiseta da CBF. Independente de posição política de esquerda ou direita, existe um reconhecimento, uma ideia de pátria e eu acho que a ideia de pátria também é uma projeção da felicidade das pessoas, a gente também se reconhece como brasileiro. Por mais que eu seja crítico a essa merda toda e coloque isso nos filmes, eu sou brasileiro, eu adoro isso daqui, eu adoro viver isso, isso para mim é ser feliz, eu não quero ir para outro país, eu não quero ir para fora, eu estou super bem, sabe? Então, o “Brasil S/A” também está trabalhando essa dimensão humana da felicidade, como esses símbolos também impõem pra gente uma identificação, uma localização cartográfica no mundo, o que é ser brasileiro. E ser brasileiro pra gente é ser feliz, a gente exporta essa felicidade pro mundo inteiro…
Então, eu acho que os dois filmes falam muito disso, dessa dimensão humana da felicidade e como a gente vivencia isso no país e de como o país tem se transformado, de como pessoas, como no “Pacific”, antes não poderiam ir para um cruzeiro e que agora podem, de como as pessoas, no “Brasil S/A”, estão trabalhando todas essas transformações macroeconômicas, de 40 milhões de pessoas que saíram da pobreza. É o cortador de cana que vira operário e parte em missão espacial. Todo esse crescimento e essa condição toda que temos experienciado coletivamente estão em jogo nos dois filmes. Eles seguem por caminhos muitos distintos, como você mesmo sinalizou, muito diferentes, mas eles têm uma mesma inquietação, que são essas transformações do país e como a gente, brasileiro e brasileira, tem reagido, tem buscado a felicidade e tem buscado se inserir no mundo.
“Brasil S/A/” está em cartaz nos cinemas.